Quatro poemas de Michel Sleiman
Michel Sleiman, 57, nasceu em Santa Rosa, RS, morou em Beirute, Líbano, entre 1969 e 1976 e atualmente vive em São Paulo, SP, onde leciona no Curso de Árabe da USP. Autor do livro de poemas Ínula Niúla (Ateliê Editorial, 2009), organizador e tradutor da antalogia Poemas: Adonis (Companhia das Letras, 2012). Suas publicações mais recentes são as traduções dos livros Onze astros, de Mahmud Darwich (Tabla, 2021) e Poema dos Árabes, de Chânfara (Tabla, 2020). É autor dos ensaios A arte do zajal (Ateliê, 2007) e A poesia árabe-andaluza: Ibn Quzman de Córdova (Perspectiva, 2000).
Acompanha a seleção de poemas inéditos a seguinte mensagem do autor (que autorizou sua reprodução):
Caro Matheus: envio-lhe estes poemas para Ruído Manifesto, tirados de um livro bilingue, português e árabe, ainda sem título, que estou preparando com intenções de publicar no ano que vem. Para a revista, envio os poemas só em sua versão em português.
A poesia que escrevo, e quase tudo o mais que faço, tem a ver com minha experiência de vida em duas localidades: o Líbano de um tempo e um lugar hoje vivenciados no corpo da memória e o Brasil que até agora não sei como e quanto caibo nele e ele em mim. Acho que me cabe este verso de Waly Salomão: “Fui criado na ciência dos cuidados. Agora, entre meu ser e o ser alheio, a linha de fronteira se rompeu”. Isto, acredito, está no meu livro Ínula Niúla (Ateliê Editorial, 2009), devidamente pontuado na apresentação de Horácio Costa.
“Súplica”, “Réquiem para Fauzi Maluf por seu livro inacabado”, “Réquiem para uma mãe partida” e “Parisinas” são poemas que, parece-me, combinam com o momento atual por que passa o mundo.
Com meus cumprimentos,
Michel
***
Súplica
A teus olhos rogo,
ânfora sem orelha:
jarra quebrada
não guarda água.
Muhammad, Cristo, Abraão.
Eleva-os a Deus,
teus olhos meus…
e adeus.
*
Réquiem para Fauzi Maluf por seu livro inacabado
Alma
ascendida
sem bridas
retorna
à abóboda
carmim.
Teu livro
corpo
tolhido,
poeta geômetra,
+ de seu som
– de seu signo
[como em Mallarmé]:
seis estacas
à morada
tersa
quando, Ícaro, imolou-te a cera.
*
Réquiem para uma mãe partida
1
Deposito a rosa em teu corpo
e rosa quisera estar ao entrares a Morada.
Em tuas núpcias era eu só semente
tímida à mostra.
Amanheceu. O alaúde crispou
os dedos do agricultor.
A tarde estreitou o colibri.
A água deitou na panela.
A cigarra enxameou
o canto-espada.
2
Rosa quisera estar
ao entrares a Morada.
Esquife dourado, teu corpo
agora é ânfora cerrada.
Sondarei os sulcos da terra
rogando orvalho à pedra:
“Mãos cegas
em leito de terra,
escançai-me
fluidos de Éden.
Até onde levam-te os pés,
adorada,
que em púrpura esplende
o rosto das águas?”
Rumor de asas,
libélula.
Zéfiro
a crispar a paz das águas.
3
Rosa quisera estar
ao entrares a Morada.
Quem sabe em que rincão dos ares
Ísis repousa a sandália?
A fuligem esquenta a mó das urbes.
Andorinhas migram em teu encalço.
Tesouro arrostado,
memória,
relíquias do corpo ao corpo:
sudário de mechas
teu cabelo,
fenícia,
herdeira de Cadmo,
Tammuz e Aylul tocam-te a fronte
quando cruzas arcano distante.
E és tão-só mãe que ensinou
a escrever e somar com favas.
4
Rosa quisera estar
ao entrares a Morada.
De ti saí, a ti me volto,
orquídea lenta ao se abrir.
Denso, o tempo sabe a lã;
a alma, a entulhos.
Vestes linho e algodão,
a tiara a craveja louro.
O rosto é seda.
Filigranas, os cílios.
Arco-íris antes da chuva,
o céu se abre a teu torso mudo.
5
Rosa quisera estar
ao entrares a Morada.
O que os anjos
tartamudearão?
− “Não te demores,
a Carruagem espera tua ordem.”
− “Não te apresses,
a ordem espera tua prece.”
Os rios se vão. Vai-te.
Vimos e vamos. A paz!
*
Parisinas
Harry
Tem algo de Arri
a mudez de Parri
– água no pípedo.
Pisar a rua?
ou passear
na musculatura?
Qualquer coisa
de Arri,
Parri, algo
de dia dormido:
a cidade, seu savoir faire
o ar dândi
a sexuar sistemas eifélicos
pairando consoante
a esfera galática das vogais tônicas.
Tudo a ver
em Paris
dar com Harry.
O resto é não-Arri, ainda.
Tayeb
O que vem da
amêndoa do olho?
Sinos? Alminar?
Coração migratório
árabe-berber-brasílico.
O único
a reconhecer
o hálito da maçã.
– Tayeb.
– Niúla.
Jardim de pelos,
remos rijos
e as borbulhas
– Inta hunáyyan.
– Inta táyyib.
– Inta ’álbi.
– Inta bádani.
– Inta hayáti.
– Inta mánzili.
– Ya rúhi. *
Paris, seus vapores.
Túnis, Bekaa e as tardes.
“De manhã os livros,
à tarde os homens,
à noite os amigos”
Rue des Bons Enfants.
Rue des Mauvais Garçons.
“O resto é um nada
quase que valha”.
Não vi Adonis
mas vi Adônis.
Vi-me no outro,
viu-me dentro.
Dei-lhe o que me não era.
Deu-me o que lhe não era.
Queria,
mais que tudo no mundo,
queria-me
cego, surdo, mudo.
Redobrei os quereres,
como se diz,
qui-lo inteiro
ao preço de Paris.
As jarras de Allah
Como dar de beber à sede
a precisão perene?
O amor é volátil em Paris
como o jasmim das faces de Tayeb
mechas junto às sobrancelhas.
Sudário a abraçar corpo trigueiro.
Tayeb em Paris e as jarras de Allah
a verter madrigal de dores.
Alaúdes de ouis
e nons.
Luzes se apagam atrás do Louvre,
onde o vapor se abre a outro sol.
Noite total,
meu coração é barco largado:
– O amor é tua presa.
– O amor te represa.
– O amor é rendição.
– É a cor desta casa.
– Dá-me a água da cura.
– Toma-a, e nada mais.
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* Você é carinhoso./ Você é agradável./ Você é meu coração./ Você é meu corpo./ Você é minha vida./ Você é minha casa./ Minha alma!