Quatro poemas de Paulo Ferraz
Paulo Ferraz nasceu em Rondonópolis, MT, em agosto de 1974 e vive em São Paulo desde 1995. É autor dos livros Constatação do óbvio (1999), Evidências Pedestres (2007) e De novo nada (2007), este último publicado também no México e no Equador. Organizou a antologia Roteiro da poesia brasileira: anos 90 (2011). Os poemas aqui apresentados fazem parte do livro Vícios de imanência, primeiro colocado no 1º edital de Livros da Cidade de São Paulo e será lançado em agosto de 2018.
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E se me amputassem a língua
para Fábio Aristimunho Vargas
e se me amputassem a
língua, não esta — este
músculo que trago na boca a
se debater salivado entre
dentes e palato, bandeirola
solta ao vento, serpente
semiviva, lesma absurda,
mãe da algaravia —, mas
aquela, a que comanda os
movimentos, a outra, alheia
à carne, a que segura o vento
e lhe extrai a melodia, a que
dota a serpente com a seiva
da palavra, a que confere à
lesma a leveza do pássaro?
perderia a carne, o músculo, a bandeirola, a serpente,
a lesma, pois ela, a língua, a minha língua,
continuaria em mim, mas e se me amputassem essa
língua? Essa, a que é filha do meu primeiro choro,
essa, senhora de mim, a oleira que me separou do
outro? e se me amputassem a língua, se me
roubassem o último suspiro em minha língua, meu
antichoro? como morrer, se morto já estaria,
amputado de minha língua, amputado de mim?
*
Em verdade temos medo
para Tarso de Melo
haja o que houver, contenha-se
podem te denunciar à OKHRANA
não responda, não conteste
a GESTAPO dará a última palavra
coma com os olhos fixos no prato
alguém ao teu lado pode ser da KGB
se atenha às banalidades da vida
a CIA pouco se importa com isso
evite contato com amigos de amigos
ninguém conhece os membros da SAVAK
não leia jornais no transporte público
os da STASI também voltam para casa nos trens
não cite autores que ninguém os leu
a PIDE riscará seus nomes e suas obras
seja comedido e econômico nos gestos
pode haver câmeras do MOSSAD
omita teus pensamentos, ela é tua mãe
*
Poema bomba
Projeto o poema como
um artefato explosivo;
um composto de imagens
que uma vez detonado
despedace o edifício
de ignorância que grassa.
Projeto o poema como
um coquetel molotov –
palavras de guerrilha –
que possa ser lançado
contra os escudos moucos
do meio da multidão.
Projeto o poema como
uma bomba de frag-
mentação, armamento
ardiloso que ao incauto
alcance sem pedir li-
cença, ferindo a alma.
Projeto o poema como
um cogumelo atômico
capaz de cruzar mares
e se fundir a outros
códigos com sua radioa-
tividade perene.
Mas ao fim o que explode, ou-
vido só por amigos,
vale sequer um traque
*
Estropiado
Trago nos meus genes a propensão para
refazer costuras e remendar furos
de panos – a roupa da missa é um fantasma
que me encalça, caso não durasse um ano
teria que me aviar de qualquer jeito para
continuar a ser o guri da camisa a-
marela ou azul, aula permanente de re-
signação. O mundo marcha e me conduz a
reboque, se bem que ficar para trás se-
ria mais apropriado, sempre fui precário, a
ruína do que não se constituiu: móveis
com pés rotos, porta em- perrada, comida
requentada, o risco i- minente do corte
da luz, o pavor de a- doecer com o nome
na praça. Por dentro sou do mesmo modo
remendado, um trapo de educação que me
talha o pensamento e me esfarrapa a língua,
por isso gaguejo na fala e no afeto,
sequer sei expressar a minha dor, embora
seja de um país feito de outros estropiados.