Quatro poemas de Rafael Tahan
Rafael Tahan (1989) nasceu em São Paulo. Formou-se em Letras na Universidade de São Paulo (USP), onde atualmente estuda poesia contemporânea no mestrado. Publicou Diálogo (2015, Editora Scortecci). Os poemas abaixo fazem parte de um complexo poético desenvolvido em cinco livros – ainda no prelo.
***
Bula
Libérrima floração do edifício humano:
credo, cruzada, sentença, oração: poesia
recrudesça! ainda que a mão do próprio bojo
civilíssimo o aroma: aspiração de asfixia
botão do hálito prescrito o pavimento
a pá vazia a escavacar da várzea ao centro
procura em si consigo o nada em que o sustento,
leitor, que o busco formular à minha imagem
lavrar mil terras e que delas brote o vento
atenta! que do chão ao chão a flor recresce
que a terra quando fértil vai do enterro à prece.
*
Alvorecer
Veio a tempestade
não como o prenúncio
do horizonte órfão
uma terra ainda fértil
vegetais suspiram
pálidos das sacadas dos
edifícios a morrer de tédio
e
um sermão de pastor
tom de ironia nas bocas dos
engraxates vai uma graxa aí
magnata? poetas a
professarem descalços
três corpos
sob o piso de um paço mil
portas de afresco leilão
sob altas paredes
tombadas
calam-se:
o primeiro foi infarto
o terceiro engasgou-se com um verso de dezesseis sílabas
segundo e último antes de olhos baços hoje
selados se adelgaça enquanto
aguarda
a
sentença
oh! altas vozes proféticas
que em plena luz anunciais
vossas palavras céticas
morreis dia a dia ao
estranho deleite dos
noticiários:
mal se distingue
em meio ao coro
de microfones
as folhas lá fora
emplumadas como
cinzas depostas pelo eterno
outono de seus corolários
a cobrir suas
raízes expostas
e arvoram o presente
lutuoso jardim
de graves
solenes
e paralíticas
aves
estiradas
ao solo de
suas asseadas
costas
descoram-se no espaço
não apodrecem
nem frutificam
a chuva não vem
o ventre da terra
não cresce
mas o susto de onde
pouso pudera
soa uma prece
centímetros do sítio
perde a
cóclea e
o vestíbulo:
estatela-se
bastasse o tombo passados um dois três carros
víscera
pra todo lado
na esperança de pombos:
corujas sobrou um bico
ainda em triunfante
movimento de fala
*
Mãe
A Caio Augusto Leite
Não reconheço mais o aspecto
nos contornos mais obscuros
desejo de logro uterino
vagem desventrada falsa
carnadura fava desmedida
que somos
o aspecto bruto dos aposentos
superiores
de pragas urbanas
o decúbito
a economia dos encanamentos
revoga a água viva
de volta às calhas
ela escorre pela marquise
penetra a tinta semi-removida
pelo tempo suplantando o
reboco
os tijolos revelam as formas que resistem ao tempo
não à memória
minha mãe trabalha até as onze todos os dias se acordo, olho pela janela, com esperança, vê-la correr a varanda, por fora, contornar os muros da casa penetrar a cortina, como uma segunda pele, nunca a pude decifrar, meu pai diz que é o vento e conta histórias sobre como é notívago e traiçoeiro
Jesus não foi um milagre nunca ouviu falar de partenogênese?
*
Pequeno-manual da revolução humana
Aquele homem aquele
penumbra sob a sombra
de uma faia pequeno-burguesa encara
defronte o sublime aspecto do edifício moderno
encara mais de perto a intestina flora dos pequenos complexos
habitacionais à mão
apenas
do gestual pouco ortodoxo dos bichos indomesticáveis
um descartável
e
dos biscoitos só o farelo
encara
o minúsculo horizonte sob a sombra do que é a mais sofisticada expressão do engenho humano ao olhar voluntário das sentinelas
e
sorri satisfeito
decifrado o enigma de castelos
jamais arquitetados.
Se algo ali se elabora nada em sua natureza
elementar pressupõe o vigor imemorial dos
vegetais ou o cifrável valor do minério
– até a economia ordinária do carbono
exige o privilégio de um útero –
pois
o que ali recrudesce foge a disputa das
ciências e das artes sobretudo silentes
à cínica sombra de uma faia.