Quatro poemas de Rosane Cordeiro
Rosane Cordeiro é natural de Florianópolis. Graduada, mestre e doutora em Letras-Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina, publicou Teatro do Cotidiano (2014), De choros e velas: o feminino em verso e prosa (2018) e O amor não cabe no peito (2019). É professora e membro da Academia São José de Letras.
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não sou água mansa
nem doce
sou mar revolto
profundo
salgado
não guardo rebanho
sou trovoada
tempestade se preciso
faço tremer a terra
reviro mar
derramo lava
sou cabra da peste
antes de tudo, forte
*
lama vermelha no asfalto
a ambulância vai ao chamado fake
o rabecão se atrasa
há uma barreira de soldados
praças pobres presunçosos
no jornal o presidente diz não nascer pra ser presidente
o médico queria ser músico
o músico queria ir à festa
a festa acabou
80 balas
número par divisor de 2
chama o faxineiro terceirizado
hora de limpar a rua
*
livro grosso nas mãos
abro-o
nas entrelinhas um vazio
pelas páginas olhos desesperançosos
se perguntam
por onde anda a poesia?
fecho-o
na tevê cenas de queimadas
vidas ardem
gente comemora
cenas escatológicas patológicas
a morte de um jovem
na mão uma arma falsa
na mochila poemas de Bukowski
torneiras secas anunciam um temido tenebroso tempo
o sol se envergonha
nuvens tímidas ameaçam chorar
a lua o socorre
esgota-se o tempo
um inferno mais que dantesco se aproxima
deus lava as mãos
criou seu maior inimigo
a poesia acinzenta por aí
*
amanhece gelado
brilha o sol lá fora
lá dentro o poeta tenta escrever o belo
enaltecer a vida
apostar no amor
saudar a felicidade mesmo que clandestina
cansou-se do sangue a escorrer dos versos
das metáforas embebidas de ódio
dos ritmos descompensados
sem eu líricos amargurados
queria sonetar
calcular cada sílaba
encontrar rimas ricas
escrever na norma do certo
sem palavrões
sem chavões
queria esquecer o esquecido
não queria ser poeta de um mundo caduco
anoitece
faz frio
sobre a mesa uma xícara de café intragável
enxerga além dos quatro olhos
há dedos no gatilho
há barrigas latentes de mulheres loucas
homens de chinelo assistem ao futebol
bolas na trave
na janela lágrimas confundem-se com a chuva ácida
é hora de dormir
para alguns amanhã será um outro dia