Quatro poemas de Stefano Calgaro
Stefano Calgaro (1991) nasceu em Porto Alegre e vive em São Paulo. Pequena volta (Pátua, 2019) é seu primeiro livro.
***
Meus demônios têm a dinâmica dos peixes
são escorregadios nas mãos
e são sem nomes
como nossos melhores dias
podem me atravessar
sem nenhum rito
guardam na memória minhas manias
esquecidas
têm o segredo dos camoatins que planam
na água
carregam olhos futurológicos
para os desaparecidos
enquanto ainda estou bem aqui
preso no resto do teu coração selvagem
*
I
Saio dos labirintos com o subterfúgio
dos bandidos na cidade costurada
amo as mãos velozes
o que içam como um sopro na nuca
o perigo brusco das pontes que anulam
uma fissura
os becos ferem precisamente
quando mal iluminados
e há esses que compartilham uma mesma natureza
que os colibris domésticos
vejo nesses labirintos
a mesma força e o mesmo começo
imbricando a vida na cidade e no campo
II
as coisas começam em azul
os animais ferozes vestidos de noivos
e irmã lua para os desavisados
costura seu nome na água
e depois se esquece
*
estrelas que são como filhas perdidas
sem escolherem a rua em que sumiram
o ciúme do teu primo de quinto grau
por teu namorado bon vivant
e seu corpo de nadador
(que) reflete na água e espraia
mascaram a falta de estribeira
com uma paixão pela vida
calcada em signos do vento
teus inquilinos de vivência
não sabem quem você é realmente
talvez o firmamento que vê tua vontade
seja o mesmo que corta maçãs
aos pássaros
enquanto todos estão conversando na frente da fogueira
sobre o que nos acontecerá esta noite
*
Maryland, o sonho foi isso que eu estou te contando:
quando minha mãe colocou com as duas mãos meu coração no mundo
eu coloquei o mundo num eixo
dentro de 6 anos
que é quando nos descobrimos
descobrimos as funcionalidades do corpo
e começamos a ver o entorno do mundo
– o mundo a definir
até o fim –
algo que nunca está completo
algo de sinistro
volta-se sempre com uma garra
e uma mandíbula rija para os que tememos
o coração nas mãos o coração sempre nas mãos
oferecendo para os que amamos e retirando para o que tememos
e para o que tememos e amamos ele oferece sempre a mesma resposta
bater num ritmo que estamos bem acostumados
mas nos assustamos quando escutamos
porém o sonho acaba
acordo em bissexto
sem me lembrar exatamente do sonho
sabendo que isto é uma tentativa de fraudar
o que não foi inteiramente esquecido
busco alguma resposta que me sirva como agulha no palheiro
descubro que o caminho mais longo de se fazer por terra
é também o mais perigoso
indo por Libéria Costa do Marfim Burkina Faso
Gana Burkina Faso novamente Níger
Líbia Egito Israel Cisjordânia Jordânia
Irã Turcomenistão Uzbequistão Tadjiquistão
Afeganistão Tadjiquistão novamente
e finalmente China
nunca ninguém tentou fazer esse percurso de 13589 km por uma questão de segurança
mas caso faça é importante estar atento às dicas
pois é possível ir da China para o Tadjiquistão
mas não o contrário
portanto devemos começar pelo lado de onde o sol nasce
e ir avançando com serenidade nos olhos
e uma faca entre os dentes
o nosso percurso em direção aonde
o sol se põe
ir de onde o sol nasce em direção
aonde o sol se põe
num percurso semelhante a tentar entrar no coração dos homens.
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