Quatro poemas e três crônicas de Natália Lopes
Natália Lopes escritora, feminista e mãe. Uma curiosa-poeta-sonhadora, daquelas que repetem sem cansar que através das palavras a gente pode curar, se curar, se reinventar e criar infinitas possibilidades de viver. É no projeto Ensaiando Palavras que cada letra do seu trabalho se conecta com o leitor e você pode ler todas as suas publicações a partir dos links disponibilizados no instagram: @ensaiandopalavras.
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[palavras que sumiram, um corpo desintegrado]
sustei essas coisas
porque não consigo
parar o tempo
a mesa pulverizada com o pó
dos dias que me inutilizaram
a caneca que deixei com resto de café
no fundo
seco
grudado
a folha do calendário
ainda do mês passado
desatualizada
como eu
os papéis rabiscados
cadernos
maresia
os livros pela metade
um bilhete que diz
eu te amo
como se eu pudesse esquecer
os rascunhos amalgamados
com as lágrimas
das noites insones
quentes
agonizantes
eu me procuro em tudo
não me vejo em mais nada.
*
Trechos da vida e tudo aquilo que está nos detalhes
Em algum lugar desse mundo, neste exato momento, tem alguém pensando “minha vida não está acontecendo”. Tem também alguém deitado no meio da sala, num apartamento quase vazio, depois de uma separação que doeu, ouvindo Rita Lee tocar na vitrola “Menino bonito” e pensando em tudo o que pode ser agora que não tem mais o relacionamento que parecia ser tão certo e para sempre “depois ir embora… ah ah! Seeem di-zer o porquê”, diz o pedaço da música. Em outro lugar, numa cidadezinha do interior, alguém está chorando a morte da avó, seguindo o cortejo das velhinhas da igreja que a avó frequentava e lembrando de todas as férias, dos natais e das comidas que só tinham naquela casa, que agora ficará vazia e silenciosa, repleta das fotos de família que enfeitam aquelas paredes.
Ali na esquina, dois desconhecidos se cruzam sem fazer ideia de que um acabou de ser contratado e está pensando em preparar um jantar para comemorar com os pais, enquanto o outro segue concentrado em seus próprios pensamentos, cheio de dúvidas se deve mesmo suportar mais um mês de um trabalho que o deixa triste, limitado, diariamente. Uma criança da quinta série está sentada, neste minuto, tentando resolver uma questão de raiz quadrada, porque esse assunto vai cair na prova amanhã, enquanto sua mãe está fazendo o almoço, contando o tempo de apagar o fogo da panela de pressão que já começou a chiar e o cheiro de feijão incensou a casa inteira, deixando todo mundo com fome antes da hora.
Você se cansa – e eu também! – reclama, pisa no chiclete na rua, perde o ônibus, perde dinheiro, deixa para fazer o imposto de renda de última hora, adia a regularização do título de eleitor, quebra um copo. Mas também cuida do jardim e arranca os matinhos que deixam as plantas com o aspecto de abandonadas, ouve as primeiras palavras do seu bebê ou, o primeiro dentinho de leite, daquele sobrinho que sempre pede para a mãe fazer uma chamada de vídeo com você, caiu e ele te ligou para contar e mostrar a janelinha. Recebe ajuda de um vizinho para abrir o portão, enquanto segura as sacolas pesadas do supermercado, encontra vinte reais no bolso de uma bermuda que estava esquecida no guarda-roupa, recebe uma mensagem da melhor amiga, avisando que não deu nada no exame preocupante dela, que havia te deixado triste por dias, enquanto aguardava por notícias, bebe uma taça de vinho no final do dia. Solta risadas gostosas e sinceras com um vídeo de meme tão bobo que depois de um tempo você se pergunta: “por que eu estava rindo mesmo?”. Essas coisas pequenas acontecem nos entremeios das coisas importantes e inesquecíveis.
A vida é o que está acontecendo, minuto a minuto. Ela é mesmo muito cheia de clichês e de rotinas, e tem sempre uma música de fundo para contextualizar as coisas e dar um ar de cena de filme para quem ousa imaginar as tais cenas. Ela acontece nos pequenos momentos. Naqueles espaços de tempo em que a gente esquece de prestar atenção porque o corriqueiro vai e vem tantas vezes que até já perdeu a graça da novidade. A rotina é quase sempre sem graça, concordo, mas ela tem suas belezas se a gente quiser perceber. A vida está acontecendo quando a gente sente o cheiro do frango assando no forno ou o cheiro do desinfetante de lavanda que fica no ar, quando a gente termina de fazer aquela faxina e, mesmo cansado, tem a impressão de que todas as pendências foram reparadas, porque casa limpa deixa mesmo essa sensação de que está tudo resolvido. Tem amor em cada detalhe e o amor é como uma cama que teve os lençóis trocados por outros, limpos e cheirosos, e a gente deita quando tudo parece desacelerar.
Tudo costuma acontecer nos menores intervalos de tempo, mesmo que o imperfeito nos engane e que nos faça acreditar que só se vive a partir das grandes epifanias. A gente se prepara sempre para uma tsunami, mas o bom mesmo é ver que no final tudo não passa de uma marolinha. Não deixe o mar te engolir.
*
Um milhão de terras cabem dentro do sol
Quero ser notada. Você também quer. Queremos ser lembrados, e agraciados, e compreendidos. Acho que a parte mais difícil de se sentir em terra firme em tempos de hoje é justamente essa necessidade-carência-urgência em ser aceito, aprovado, aplaudido. Espetacularizo os minutos do meu dia, abro as cortinas, as câmeras, retiro os meus véus. Você também. Me disseram que cabem mais de um milhão de terras dentro do sol, será que isso consegue a proeza de fazer a humanidade entender o tamanho da sua insignificância? No fim do dia, o que fica de saldo é o que eu e você conseguimos deixar de rastro no mundo. Na terra que se pisa e no espaço das virtualidades. Tá tão bonito o céu, eu quero te falar, mas posso te mostrar, mesmo que a imagem borrada e pixelada da câmera suja do meu celular não seja potencialmente verdadeira. Saio da inércia, te vejo de longe, chego até você, com a palavra que escrevi às duas da manhã, no meio de uma insônia que me deixou inquieta e preguiçosa, e roubou a tranquilidade de um sonho possível. Me aterro na vida real, esqueço dos meus objetivos e perco a habilidade de lidar com minhas dissonâncias. Até que recebo uma notificação no celular, uma mensagem, um afago, de alguém que me lê, que me ouve, que bebe c-a-d-a-l-e-t-r-a que eu ousei tirar do papel, que não apaguei, que me atrevi a digitar, e publicar, e entregar, e muitas vezes me constranger por não saber se alguém no mundo vai estar disposto a segurar nas minhas mãos enquanto identifica partes de si no tanto que eu tirei de mim. De volta àquela mensagem, que começou a ser escrita em vinte e um de abril, ela me falou que ficou suspensa por alguns meses, enquanto lhe surgiam palavras novas, novos alimentos para os momentos em que ela estava sozinha consigo mesma e que bom saber que estive em sua companhia nesses tempos. E ela me falou, meses depois, abril já estava longe, lá atrás, que resolveu escrever para não deixar para depois aquele não-dito, porque gostaria de dizer de cada parte da criação que coloquei no mundo, quase sempre em estado de suspensão de tudo, quando tanta coisa insistia em não fazer muito sentido e somente a palavra fazia a força necessária para me trazer de volta. E ela me ouviu, leu, guardou e soprou tanta coisa nos meus ouvidos virtuais que eu estou há semanas discorrendo, escrevendo e apagando respostas, porque parece que no instante em que li tudo aquilo, toda palavra útil para aquele momento desapareceu, abrindo espaço para o vazio da contemplação. Parece que somente hoje, cadenciando l-e-t-r-a-p-o-r-l-e-t-r-a, eu me sinto pronta para devolver para ela, nessa forma de tantos pensamentos sem parágrafo, e se possível sem ponto final. Cada palavra dessa mensagem resplandeceu em mim, dia após dia, e tinha alguma coisa me avisando, como num sussurro: sinta cada vírgula e essa quentura que surgiu na sua nuca. Nesse algo que me tirou um pouco do eixo, e me falou, ponto a ponto, sobre cada sentimento remexido, cada memória destravada, cada possibilidade de história que ela, quem sabe um dia, poderá viver também, eu te digo que espero que a gente possa mergulhar nos nossos pensamentos mútuos então, nas zonas fronteiriças entre a vida real e virtual, nas histórias que compartilhamos sem saber pra onde elas estão indo. É um pouco perigoso quando a gente se vicia nas sensações que os outros nos causam. Se não mantiver os pés firmes no chão, sai voando como um balão; num primeiro momento, leve e livre e logo em seguida consumido pelo fogo e se desmanchando no ar. Volto para o meu núcleo, me recomponho e leio t-u-d-o-d-e-n-o-v-o, para não deixar passar nada do que ela achou de me falar. Criamos um manancial todo nosso, onde correm águas abertas, cristalinas e nossas palavras podem se fundir sempre que for possível. Sigo elaborando respostas para tudo, porque aprendi que quando a gente afeta uma vida, acaba salvando um pedaço do mundo, sem-ponto-final, como eu prometi
*
UMA DOSE DE ESCAPISMO
Eu gosto de olhar as janelas das pessoas enquanto caminho pela rua. Tenho curiosidade de saber quem mora ali. Será que cabe uma família de seis naquele apartamento que parece ser tão pequeno? E as plantas? Eu adoro as varandas que parecem mini-florestas suspensas, uma pequena fonte de oxigênio no meio da selva de pedras.
Janelas com cortinas, vazias, com película fumê. Às vezes o morador olha de volta, mas não é bem para mim que ele está olhando e sim para a rua que parece não estancar o movimento em hora alguma. Janelas servem um pouco como arte do encontro. Tem sempre alguma coisa para ser vista do lado de fora, e tantas vezes eu tento adivinhar o que está acontecendo naquele exato momento que eu parei para observar. Já vi alguém tocando violino no fim de tarde, enquanto um discreto caminho de raios de sol penetrava pelos vidros e refletia de volta, junto com o som que saía do instrumento. Eu estava tão perto que conseguia ouvir aquele raro toque de música clássica.
Todo mundo precisa de uma dose de escapismo e olhar janelas é a minha. Olhar para o alto e tentar adivinhar as histórias que existem do outro lado daqueles quadrados que compõem a arquitetura do prédio e se abrem para mostrar um pouco do mundo a quem se aproxima deles. A espera de alguém importante que está para chegar, a esperança aflita de rever uma pessoa especial. Janelas são aberturas para os “e se?” da vida. O que deve estar pensando aquele homem debruçado, tarde da noite que, enquanto fuma um cigarro, contempla o vão imperfeito da rua, desfrutando da sua própria companhia? Insônia, talvez. E entre pensamentos distantes, divagando sobre seus sonhos e escolhas, ele apenas observa o movimento de carros e pedestres. Nos meus passeios errantes e também contemplativos, tem sempre alguém dançando, trocando de roupa ou falando ao telefone, o que me leva a criar histórias possíveis para aquele mundo onde provavelmente eu nunca terei acesso e é totalmente impenetrável, um mundo que mantém aquela atmosfera a salvo de qualquer perigo. Será que ela lavou a louça, retirou as roupas do varal, ligou para os pais e marcou a consulta no ginecologista que vinha adiando há meses?
O mar cabe na janela, diz o poeta. E ele é tão imenso quanto os detalhes de cada dia, da vida de quem sai, de quem chega e de quem não tem para onde ir. Olhar as janelas das pessoas e imaginar o que se passa com elas, gravar na mente os pequenos pedaços de eternidade, imaginar quais dramas elas enfrentam e sentir exatamente a medida do meu próprio egocentrismo, é um dos aspectos ocultos dessa minha pequena e excêntrica mania. Aliás, presta atenção, quem sabe um dia eu não passe olhando para a sua janela também.
*
eu sigo perdendo as semanas
me desprendendo do tempo
quebrando os sistemas
os meus
em milhares de pedaços
Pequenos
Irregulares
Pontiagudos
como quem estraçalha um espelho em tantas partes
que se torna mil caras
na imagem refletida
me despeço de quem eu acho
que deveria me tornar
antes mesmo de sê-la
não consigo alcançar
tá tudo longe demais
quebrada falida desconectada
roubaram minha sobriedade
me quero de volta
sinto saudade
– este é um daqueles poemas
que sintetizam percepções intransponíveis
e abrem espaço para estratificar
os dramas.
*
[não prometo curar
você
e ninguém mais
estou há muito
tempo
limpando as minhas próprias
feridas]
*
a letra pousa no papel
se demora, de leve
feito um passarinho
que faz do fio de alta tensão um poleiro
no papel pardo deste caderno
artesanal
costurado
com tecido colado na capa
a letra faz morada
entre
palavras riscadas apagadas
renunciadas
renascidas
um papel de alta tensão que acolhe
o lápis
a mancha que fica da borracha que apagou
os rabiscos
o marca-texto amarelo
se portando como um poleiro
da língua escrita como ferramenta da natureza
humana
é assim que se faz poesia eu me pergunto
olhando fixamente para o papel
que solta pequenas descargas
elétricas
sim, é.