Quatro poemas e um videopoema de calí boreaz
calí boreaz nasceu em Portugal, onde estudou Direito, em Lisboa, em meio às noites de fado e flamenco. Viveu em Bucareste, na Romênia, onde estudou língua e literatura romenas e tradução literária. No virar de 2009 para 2010, atravessa o Atlântico rumo ao sul para viver no Rio de Janeiro, onde se entrega ao estudo e ao ofício do teatro. Na literatura, traduziu do romeno os romances O regresso do hooligan [ed. ASA, Portugal], de Norman Manea, e Lisboa para sempre [ed. Thesaurus, Brasil], de Mihai Zamfir. Seu livro de estreia, outono azul a sul [ed. Urutau, Portugal & Brasil, 2018], é um relato poético do exílio e da clandestinidade, e tem posfácio de João Almino e desenhos de Edgar Duvivier e António Martins-Ferreira. calí integra a coleção Identidade vol. II da Amazon Kindle [2019] com o conto islandeses. Em 2020, surge, pela Caos & Letras, seu segundo livro de poesia, tesserato, uma reunião de tentativas poéticas acerca da suspensão e do deslocamento na imobilidade. Seus textos têm aparecido também em várias revistas literárias brasileiras, portuguesas, galegas e mexicanas, bem como em exposições de Portugal e da Índia. [casas virtuais: caliboreaz.com | instagram.com/caliboreaz]
***
mamihlapinatapai
em russo, há uma palavra específica para o afeto que se tem por alguém que se amou. em tcheco, há uma palavra para um certo tipo de angústia diante da própria mediocridade ou falta de habilidade (lembro de kundera falar dele). na escócia, parece que há uma palavra para o tique do lábio superior que indica a antecipação da alegria. em albanês, há alegres 17 e 27 palavras respectivamente para sobrancelhas e bigodes. em romeno, há sei lá quantas que significam, todas elas, neve, mas cada uma para especificar um certo tipo de neve, que por aqui (ao sol marinheiro da língua portuguesa) não distinguimos por desnecessidade. e se o russo olha para o amor antigo, veja bem: o japonês inventou uma palavra para um sentimento de pré-amor. em yagan, idioma indígena falado por um povo da tierra del fuego, mamihlapinatapai é aquele olhar trocado por duas pessoas quando ambas querem que a outra tome a iniciativa de fazer algo que ambas sabem que querem mas.
mas: o que é a coisa menos a palavra? a palavra menos a língua? isso que se percebe num repente e não tem esqueleto nem contorno para apoiar sua existência — não existindo, pode ainda resistir? se a língua nos funda a humanidade, e se há quem saiba que neve não é simplesmente neve, como amor não é simplesmente amor, assim como a saudade não é só uma falta, e calunga não é só saudade mas também abismo e deus… como posso eu
dizer algo agora daqui de onde estou?
*
balada dos vadios quadridimensionais
estou muito compenetrada na imagem suspensa de um hipercubo a girar
: na visão do pássaro a passar entre os fios da fiação-elétrica-sobre-azul
: na janela do 8º andar por onde cai lentamente alguém — em forma de nada
: no momento em que uma cor se apaga e outra se acende no semáforo
: no vidro a emudecer o frenesim do lançamento na livraria-café
: na fé quanto à necessária inutilidade de toda a poesia ali contida
na medida em que ela é
o contributo humano à infinitude do mundo — e para que serve
o infinito
eu estou muito compenetrada na imagem suspensa de um hipercubo a girar
: na intermitânsia do letreiro a anunciar o café curativo da ansiedade
: na busca alheia do gesto que livre a palavra do livro
: no suave compadrio entre o que arde em cada coisa da cidade
: na cidade como arte do encontro de linhas geométricas mas não de gente
: na tampa do esgoto que não explode pouco antes que eu pise nela
: no fogo a comer a outra parte da cidade enquanto esta sofre de esgotamento tampado, enquanto eu
continuo muito compenetrada na imagem suspensa de um hipercubo a girar
: na rasteira balística dos bilhões de sapatos ritmados a desarrumarem-se rumos
: na consciência da carteira vazia de notas e moedas e mesmo do que as precede
: na súbita e esmagadora surgência de um prédio abandonado
: na súbita e esmagadora percepção da beleza que há num prédio abandonado
: no que há de súbito e esmagador em perceber que no abandono assim muito assumido nos livramos de quase tudo e quase nada nos falta,
só um pouco de ar, e por isso é que eu
ainda estou muito compenetrada na imagem suspensa de um hipercubo a girar
atenta, a ver se a aresta-âmago a-que-brilha pára de frente pra mim
parece simples mas estou há oito mil anos nesta vã guarda
e depois não sei — penso que brilharei e esmerilharei todas as formas
da leveza
e da inutilidade inaugurais
penso que até sou capaz de pular carnavais (outra vez)
assim como quem se expande a partir de um 8º andar
levando consigo os pássaros os semáforos
os estilhaços dos vidros — e da poesia
as tampas dos esgotos pelo ar
e os passos dos funâmbulos finalmente
a desabar
e os fogos todos soltos
a confiarem-se as danças dos grandes vazios dos grandes lugares
o café os livros o poder de compra
recalculadamente
a brincarem de avoar com as crianças
ah, depois não sei — penso que a cidade toda será
não o chroma key do artista mas
a carótida das profundas crianças que nada sabem da língua e
só querem o abandono da cambalhota no ar, e rir
e rir demasiado
.
o que sei é que no desmazelo poético da cidade
o hipercubo continua a girar e eu, aqui à margem de tudo,
largar-me!
não me posso distrair
é que se não tivesse já parado, ainda podia parar
.
com uma vênia ao equilibrista
está tudo justificado
*
desaforismo
horizontalmente,
o frio está sempre a aquecer \ o quente não pára na quentura
o dia cada vez mais dia \ cada vez mais atinge \ a noite
a doença é um processo de cura \ a sanidade, de loucura
a solidão mira na multidão \ e vice-versa
e se há uma certeza, é a da calma que vem depois do desespero
há um (inconcluso) equilibrismo (quântico) que busca o zero — de tudo
e depois o próprio zero é transistor para um outro deslimite qualquer
verticalmente.
e aqui, no nadir do nada
na calada dos cálamos do pó do éter
é quando começamos a definir e tudo começa a deixar de fazer sentido
como quem encontra e nisso não conseguisse mais situar-se em relação a isso
mas diz que deixando o oco fermentar, e fermentar, há quem
se encha de edifícios
e ao contrário do contrário sempre a contrariar
— o que, veja bem, faz pensar que amar e não amar é,
no fundo do fundo sempre a afundar,
a mesma coisa
*
ainda sou muito nova para escrever este poema
percebo que a melancolia é um excesso
— de espaço e de tempo
percebo que sou dos cavalos que precisam
não do toque do chicote ou mesmo do sangue a rachar os ossos
mas do próprio desaparecimento
— para iniciar o trote
percebo e procuro seguir o conselho de ferlinghetti
ouvir meu próprio respirar e, de ouvido no chão, o girar da terra
depois, desaparafusar as portas mas não
jogar fora os parafusos
que eu ouça bem isto: não jogar fora os parafusos
não destruir o mundo se não tiver algo melhor para colocar no lugar dele
— é que por enquanto não tenho mesmo nada melhor em mente
estou aqui (onde mesmo?) com um saquinho de parafusos
pendurado ao pescoço (e é pesado)
mais uma vez, mais uma vez
o dedo suspenso a um milímetro do botão da bomba
e não estou conseguindo interpretar os sinais
sou ainda muito nova para escrever este poema
mas já sei que o canto dos pássaros é de desespero
também já percebi que saber não chegar é tão
bonito quanto: chegar
de boniteza estamos bem, lá isso estamos
the boniteza is the new felicidade
a cidade anda medindo meus passos
de lupas nas pontas dos tentáculos
de cima de baixo dos lados e na diagonal
sobretudo na diagonal: a luz mesmo a raspar
mas sem aderir à minha pele
que é real
que é real
ter medo é ainda desconhecer
corrijo: ter medo é ainda precisar conhecer
eu não estou conseguindo interpretar os sinais
corrijo: talvez não existam mesmo papéis dobradinhos atirados do além
é só isto: enquanto uso palavras, as palavras
usam-me
enquanto pergunto à montanha, a montanha
pergunta-me
enquanto continuo aqui, o aqui
continua-me
ah, ouve bem isto:
ver tudo bonito é ter descoberto a beleza das coisas feias
mas hoje eu estou cansada
então, dou o sorriso dos miseráveis e canto como quem desiste secretamente
não nos iludamos, meus vizinhos:
acabaremos sempre um pouco antes do fim
serei sempre muito nova para escrever este poema
*
algures depois \oscilografia