Quatro poemas e uma cena teatral de Juçara Naccioli
Juçara Naccioli é graduada em Letras – Literatura (1999), especialista em Teoria e Prática da Língua Portuguesa (2005), ambos pela Universidade Federal de Mato Grosso. Atriz oriunda do grupo de teatro Pessoal do Ânima, artecriadora, membro do Coletivo Parágrafo Cerrado, professora. Atua em momentos (im)previstos como debulhadora de sentimentos e tecelã de versos e prosas. Proprietária do caderno brochura no qual deixa florescer poemas permeados de sensibilidades do Espírito e audácias da carne: Desengasgo da alma.
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FLORADA
Minhas raízes são firmes
Seguras e de cheiro bom
Essência curadora,
Auto curativa.
Embrenham-se solo a dentro
À procura de vida
Suprema Guia
Supremacia
Meu tronco sinuoso tonificado
Não mais enverga, não quebra, nem cai.
Minha seiva hematoide,
Nutre minhas galhadas
Engrenhadas pela complexidade
Daquele que é ‘modelaDor’
E se fez senhor
Meus cachos cheirosos
Cachos de flores bonitas
Bagunçados e esvoaçados
Pelas tempestades necessárias
Das estações psíquicas
Tornaram-se resistentes
Depois de uma vida pungente
Minha sombra frondosa
Em algum tempo ressequida
Agora sinala a risada
Propicia frescor
Respeita minhas lágrimas
Por ordem da vida
Ampara e devolve
Amor
Hoje será para sempre primavera.
*
O JOALHEIRO
Eram duas grandes esmeraldas
Pedras preciosas de brilho singular
Na maior parte dos dias, reluzentes
Noutros, a opacidade se fazia
Seu dono as expunha sem medo
Dependendo da procura
Tinha-lhes como armas
Dependendo da oferta
Dava-lhe o tom e doçura de figos cristalizados
Cobiça e inveja, dos outros, lhe encorajavam
Joalheiro, vigarista
Roubou meu rubi.
*
PORQUE NÃO É HAICAI
As cores falam
Porém a Rosa
Se fez muda?
*
ARRITMIA
Tenho um coração soberbo
Pensa que tudo pode
Vive batendo no peito
Aqui só entra quem eu quero!
Diz aí o que tu qué!
Talvez!
Quem sabe!
Vamo vê!
Malandro…
Faz de conta que não quer
Faz de conta que não sente
Mas no cair a madrugada
Risada
É, Soberbia, malandragem também sente frio!
Encolhe, reclama, engole
Seco.
Qualé, malandro?!
Que foi?
Cadê o batuque no peito?
De tantos altos e baixos
Ficou linear
*
BEATRIZ
Personagens
Beatriz
Voz masculina
Voz feminina
Orlando
Cena 1
Mulher com mais ou menos 60 anos, entra no palco, coloca uma música na velha vitrola.
Dançando, organiza uma coisa e outra, tira os chinelinhos e os deixa num canto. Vai até uma pequena mesa e pega uma garrafa de espumante, uma taça fina e saboreia a bebida, ainda dançando.
Chega até ao proscênio, quando percebe que esqueceu algo, deixa a garrafa e a taça no chão e volta à mesinha. Na gaveta pega uma pequena caixa dourada. Para no centro do palco e dança, feliz. Volta ao proscênio.
Com dificuldade, senta na beira do palco. Sente dores. Ri das dores e das próprias limitações.
B – Nossa senhora! (suspira) Mamãe, a senhora dizia que a velhice é uma merda, talvez tenha razão! Todas as vezes que meu corpo tenta qualquer movimento mais complexo e não consegue, lembro-me da senhora “Não ria, Beatriz, você ainda vai chegar na minha idade e…”. Eis-me aqui, mamãe, 63 anos e ‘ainda’ no mundo. Torta, mais ainda no mundo. (Risos) Mundo miserável. Mundo chato de gente chata. Não… o mundo é bom, Bea, as pessoas é que são ruins. Não… não seja assim, Beatriz, há pessoas boas no mundo também. Pense, pense… há de ter um terráqueo bom nesse mundo. Quem, Bea, pense! Sim, claro: Eu (levanta a taça)! Ou melhor eu, Arsênia e Melinda, minhas amigas. Opa! Eu, Arsênia, Melinda e Henrique (muda o tom da voz), o melhor michê da cidade. Os michês são pessoas boas, chegam, fazem o que têm que fazer com vontade e vão embora. Não ficam no seu ouvido como os hipócritas, remoendo: “Mas por que você não se casou, Beatriz?” “Por que não teve filhos, Beatriz?” “Beatriz, nem de vez em quando você dá uma…” “Você é uma idosa, comporte-se!” “Fala baixo!” “Senta direito!” “Fecha as pernas!” (debochada, levanta a saia e vai abrindo as pernas lentamente) “Penteia esse cabelo!” “Fecha a boca pra comer!”. É que eles não sabem que é impossível ficar de boca fechada na hora de uma boa ‘comida’. (ri e mostra o dedo médio como sinal de rebeldia). VÃO-SE-FU-DÊ! (suspira).
A velha senhora pega a caixinha dourada, de dentro tira um papelote e um pouco de maconha. Cantarola uma música enquanto ‘dichava’ a erva. Acende, dá uma tragada.
Beatriz começa a relembrar e interagir com vozes do passado.
Voz masculina – “Quando é que vai parar de usar essa porcaria?” “Maconheira, porra louca.”
B- Óh… cuidado com o que fala!
VM – “Toma vergonha nessa cara, Beatriz!” “Você não vai chegar aos 30!”
B – Problema meu, querido!
VM – “Para de usar essa merda.” “Eu te amo, Bea!”
B – Que ama o quê, Donato…? Viu, você foi embora primeiro, seu infeliz! Safado! Mas aonde você estiver, saiba, meu querido, ainda sinto saudade de você. (Curte a fumaça subindo e se desfazendo no ar). Eu amei você, Donato. Um bom sexo que deve ser lembrado sempre. Apesar dos pesares. Porque não entendo que amor besta era esse seu. Sua vara faz falta. E melhor que ela só os peitões de meu outro grande amor, Marlene. Desgraçada, queria casar a qualquer preço. Encheu tanto meu saco, que Deus me livre!
Voz de mulher – “Você não me dá valor, Beatriz, não dá!” “Você não me ama, Bea!” “Você não ama quem te ama” “Você vai morrer só!”.
B – Eu não vou morrer só, Marlene.
VM – Vai sim! Você me deixa sozinha, Beatriz. Um dia desses eu te abandono. Eu vou te abandonar, sua… puta!
B- Não, eu não sou puta.
VM – Eu te odeio! E não vai adiantar vir atrás de mim! NÃO VAI! EU TE ODEIO!
B- Vc me ama! E eu amo você também, minha linda Marlene!
VM – PARA!
B – Eu te amo!
VM – (muda o tom da voz) Para…! Não adianta beijar meus seios, Beatriz. Não vai mudar nada! Para com isso. Tira essa língua daí. Tira… não tira. (gemidos, risos e gozo)
Incomodada com as lembranças, Beatriz levanta-se e vai buscar outra garrafa. Senta numa cadeira.
B – My god! Eu estou só! Vejam que praga de mulher bonita atravessa o tempo e chega no destino! (risada tímida) Aonde você estiver, saiba, minha querida, eu sinto falta é de você. (Muda o tom da voz) Mas, que mal há em envelhecer sem alguém para encher o seu saco, porra! Nenhum mal! Faz parte da minha natureza, caramba! Não quis casar, nem ter filhos, e não quis envelhecer ao lado de uma uva passa, cheia de dor e lerda! Não quis, não quero! Casar (risos), logo eu, que tive uma vida tão intensa, por assim dizer. E se meus dias foram agitados, por que não haveria de ser agitado (mostra o cigarro de maconha e a taça) o anoitecer da minha vida? Sempre tive muitas mulheres e sempre enganei muitos homens e vice-versa (risos). Fui todas as personagens que eu quis ser, e as que quiseram que eu fosse não fui! Rejeitei todos os papéis que quiseram me impor. A menina jeitosinha de lacinhos de fita, não fui. A mocinha delicada de perninhas cruzadas, usava calcinha furada de propósito. A doce namorada de beijo suave… nunca quis ser! A aluna CDF eram as outras, eu era a aluna VTC. A professora Beatriz colocou a cabeça do advogado, do doutor e do pastor entre as pernas e eles gostaram! Devassa, não. Livre! Santinha, recatada, delicada nunca combinou com meus olhos, meus cabelos, com meu melhor perfume e menos ainda, com a minha… (bate na virilha)! Porque eu sou BEATRIZ! A Beatriz! (olha a garrafa de espumante e dá uma gargalhada!)
Ainda em meio às gargalhadas, Beatriz levanta com dificuldade.
B – Ai! (sente dores) Mamãe, que merda! (ri das dores e das limitações)
Vai para o centro do palco dançando lentamente.
Toca o telefone.
Beatriz atende o telefone.
B – Alô! Sim! Orlando, há quanto tempo, meu amor! Como está? Sim, venha! Pode! Quando pretende vir? Estou aguardando, querido. Um abraço!
Beatriz dança feliz e realizada, deliciando-se com a última taça de espumante. De repente, volta-se para a plateia e mostra com toda força o dedo médio. Dá a última gargalhada, longa e gostosa.
Sai do palco.