Quatro texto-poemas de Cris Rosa
Cris Rosa é negra baiana, escritora, professora, geógrafa, mestra em geografia e fundadora do Laboratório de Estudos sobre Feminismos, Lesbianidades e Relações Raciais (@labsapatao). Os texto-poemas estão presentes no livro Fora do Lugar (no prelo, a ser publicado pela @andarilhaedicoes).
***
dois pés: o mundo inteiro
vejo que meus pés não são mais os mesmos. eles têm marcas, calos, calundus. algumas dores em pontos específicos. unhas que crescem de outro jeito, de outro modo. até um dedo, que antes parecia se exibir, se avivar em meio aos outros, hoje encolheu. diminuiu. não sei, parece que tanta coisa já passou por baixo do meu pé dos meus pés dos meus dedos
que, sem perceber, sem que sequer fosse alvo de um olhar atento, ele tivesse se transformado em outro, mesmo sendo o mesmo. o meu dedão é o mesmo: o mesmo daquela foto em que mainha me aperta. ela dizia que amava me apertar, porque as minhas carnes eram durinhas, boas de morder, de apertar, de beliscar – e ela me aperta nessa foto. eu tô com a cara espremida, sorrindo, gargalhando, e ela em cima de mim.
e meu dedo do pé é o mesmo.
mas hoje, tudo o que envolve esse pé, o chão, os lugares por onde ele passou, já não é igual. a casa de vó é outra casa, a casa de Miana, o quintal, a varanda, o rol: são outros. o pé de acerola não habita mais o fundo, o araçá, o pé de Quarana que incensava nossas noites… agora é tudo concreto. estão em nossas memórias, como a textura da minha carne durinha nos braços de mainha.
mas tudo mudou.
são outras edições caras sons daquelas mesmas coisas.
como o meu pé, que agora dói e pisa forte – o oposto.
*
maybe
talvez eu jamais te empreste um livro cheio de notas nem te ofereça o meu preferido
nem te transforme em música – o primeiro lugar – nem te dê o aniversário de família
nem te passe a chave de todas as portas
nem te escolha ao show de Ney
talvez não te dedique o poema de Cidinha
nem leve tantas horas num buquê
nem te empreste minha casa
meu sono
minha solidão
talvez eu não perca o voo
nem a hora
nem a aula
nem o ponto
talvez eu seja menos
ou seja mais
ou seja eu
talvez eu não te entregue de bandeja as vinte e quatro horas
talvez eu acerte
uma parte
*
sons que não escuto quando saio para caminhar ao pôr-do-sol com fones de ouvido
- todos os pássaros reunidos em uma só árvore;
- a alegria das crianças ao, finalmente, saírem da escola;
- a garota que pergunta insistentemente ao pai se há uma enorme diferença entre “daqui a 8” e “daqui a 9 dias”;
- os homens desesperados atrás da bola;
- a buzina do motoqueiro que encara a minha bunda;
- o saco voando ladeira abaixo;
- a risada do bebê enganado no carrinho;
- telhas batendo com o vento;
- freios que impedem um atropelamento;
- o dono do mercado dizendo “gostosa”;
- a máquina de caldo-de-cana tique-taqueando;
- o rapaz explicando o funcionamento da PM em operações especiais; 13. a queda do coco de lá do alto até o chão;
- o muxoxo do rapaz da esquina que especula as minhas práticas sexuais; 15. a bicicleta enferrujada da garota retornando da escola;
- os hormônios em alta dos garotos retornando da escola;
- a mulher sorrindo para a brincadeira que faço com os pés – a quase amarelinha imaginada no traçado da calçada;
- a minha vizinha sendo silenciada;
- o meu próprio fôlego esboçando cansaço.
quase não saio sem fones de ouvido.
*
oração ao meu pai
eu peço ao meu Pai que me ensine a pescar. que me ensine a esperar. que me ensine estar disposta a perder
tempo.
pescar não é coisa fácil para quem não sabe lidar com o tempo que o Tempo tem. às vezes demora o dia todo pra um peixe vir.
pescar é sobre não ter garantias nem certezas. às vezes o peixe não vem. pescar é sobre se desprender em conexão com o tempo: esperar que o peixe venha.
eu nunca soube.
me lembro que desde criança vejo painho saindo com as iscas e passando o dia inteiro fora. hoje mesmo ele foi. às vezes voltava sem nada:
“- e aí, pegou peixe?
– nada! hoje não tinha nada lá.
– não tinha ou você não pegou?”
outras vezes com peixes imensos. outras com dois peixinhos ‘destamanho’. o que havia de comum era que todas as vezes ele voltava bem. nunca triste, nem lamentando o tempo passado (ou perdido, como visto pelos meus olhos apressados). acho que é a espera que acalanta o coração do meu pai.
meu oposto.
se está chateado, triste, nervoso, ansioso, feliz, animado, orgulhoso… ele vai pescar. uma vez eu perguntei: “painho, o que você mais gosta de fazer na vida?”, ele disse: “pescar!”
findou o assunto. não precisava explicação, era notório.
bobo é quem pensa que pescar é “pegar peixe”.
aàs vezes ele até devolve pro mar.
pescar é permitir que o ‘quase’ faça parte e seja grandioso e orgulhável o suficiente pra dizer “o peixe mordeu a isca e escapuliu do anzol, quase eu pego, Lane” com tanta empolgação quanto “ó aqui a foto, tá lá embaixo todo tratado já”. não importa muito o feito. é o fazer.
processo.
e quando é que não estamos quase?
pescar é ter paciência.
exige calma.
não tem controle.
pescar é estar disposto a levar um dia inteiro esperando algo que não virá e sair de lá pensando: “normal!”, como diz painho.
é se permitir surpreender pelo já esperado e rir disso.
é mudar de lugar quando for preciso: as vezes é melhor jogar a linha na beirada. pescar é também sobre não desistir: “hoje não peguei nada, mas amanhã eu vou de novo”.
quero pescar.
eu peço ao meu Pai que me ensine a pescar. que me ensine a esperar. que me ensine a estar disposta a perder
tempo.