Quatro textos de Aline Bei
Aline Bei nasceu em São Paulo, em 1987. É formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em Artes Cênicas pelo Teatro Escola Célia-Helena. É editora e colunista do site cultural OitavaArte. O peso do pássaro morto (Editora Nós, 2017) é o seu primeiro livro.
***
Meia noite
éramos apenas um casal
olhando o mar esperando o próximo
ano,
talvez um pouco mais vagarosos
do que os outros casais com taças e
rosas
pra iemanjá.
qualquer um ali
poderia morrer nesse próximo ano que começaria em minutos
poderia perder
um ente querido ou
alguma coisa inclusive dentro de si, mas
ainda Não e nós dois de costas
pra tudo isso,
alheios como uma árvore.
acontecia
na parca distância entre o meu corpo sentando e o seu corpo sentado
algo forte e por isso invisível, quem sabe o mar pudesse dar nome ao que nos acontecia,
poderia ser, e eu gostaria de sussurrar isto, porque dizer a palavra já é perder
a palavra
poderia ser a
Felicidade,
?
tínhamos combinado de assistir os fogos mas não esse silêncio, estava tudo dito e calmo entre nós.
enquanto isso as pessoas conversavam
e o que é conversar se não uma tentativa
de deixar um pouco nosso o quarto de um desconhecido.
as vozes
elas iam ficando cada vez mais nas nossas
costas
parecia que eles estavam celebrando um ano que já passou
1996
num filme gravado em super 8 desses que a gente coloca no natal e a família assiste
alguns choram
eu não. estar ao seu lado na praia
era o melhor que já tinha me acontecido
apesar de saber que
hora ou outra a gente teria que voltar pro hotel.
porque não existe ficar pra sempre
e ainda que tivéssemos essa coragem: chegaria o momento em que a nossa
( felicidade? )
se transformaria em
outra coisa
só porque um pássaro voou baixo
demais
e o mar sentiu o cheiro
da ave
e a ave sentiu o cheiro
do mar
e de repente migraríamos para a nossa
infância
você se lembraria da sua mãe bêbada no primeiro natal que ela passou sem teu pai
eu me lembraria do avô que me tocou a calcinha
e de uma festa
anos depois
o vô já morto
que eu não fui, não pude,
e lembraríamos
dos amores que tivemos, dos términos, cada um deles e todos juntos nos trouxeram até aqui na praia onde já não estamos
porque é humanamente impossível
permanecer no agora por muito tempo
assim como a palavra, nós somos feitos de
deslizes, de
fugas,
fogos.
*
Descrição do quarto da mulher que morreu
na gaveta uma carta
dobrada, frases se olhando, coisas como “eu preciso de um cachorro”
convivendo com
“meu remédio pra dormir” e a carta dentro
do quarto escuro que é
um envelope
na gaveta virando
casa
tudo dois passos
a frente, as pequenitudes são assim.
em cima da cômoda descansava uma caixa
aberta naquela
bailarina imóvel
pra onde foi a música? ela pensava caso
pensasse, ao lado um livro
Mal-entendido em Moscou.
a mulher que morreu gostava muito
desse livro
que conta a história de um casal que se desentende numa viagem
os capítulos separados
pelo ponto de vista do homem e
da mulher. depois de ler
esse livro
a morta que na época não estava
morta
sentiu pela primeira vez o grande
do Mundo, as pessoas falavam disso constantemente, mas ela
nunca tinha sentido assim
na pele
o tamanho de tudo que existe.
aquele
era o melhor livro do século
despretensioso e por isso tão bom
falava sobre todos querendo apenas dizer de 1 e também a mulher gostava do rosto
da Simone de Beauvoir
colou um pôster perto da cama.
na foto
a escritora fumava olhando pra câmera
e apenas um animal selvagem
poderia se aproximar daquele
mistério que era
olhar pra alguém que não sentia medo. enquanto isso escorria a colcha
de cetim branco parecendo
leite
bastava deitar na cama pra mulher voltar pro
útero e por fim um tapete
perto da porta
tentando acalmar as coisas, querendo ouvir
da Terra e
dependendo do jeito que a luz batia ali
no quarto
dançava por cima dele uma cruz.
*
A filha sumiu
eu estava com o meu porco comprado no Texas
mentira
comprado na loja do seu cristovão mesmo
lá as crianças escolhem
se vão levar uma boneca ou um jogo
de tabuleiro
se pudesse eu escolheria
tudo
minha mãe não deixa
ela diz que a gente não pode ficar gastando dinheiro com bobagem
-brinquedo não é bobagem – grito.
ela me dá um tapa
na boca
toda vez é assim. e ainda reclama
essa menina é muito
malcriada.
culpa sua, digo por dentro, não quero apanhar outra vez.
meu porco é única coisa que eu consegui lá da loja do seu cristovão. no dia do meu aniversário minha mãe ficou carinhosa e me deu de presente, foi
macio.
o tempo passou
e lá estava eu no quintal com o meu porco não do texas
quando minha mãe avisou que
ia no mercado
-não mexe em Nada da cozinha, ouviu?
(barulho de porta fechando)
ela sempre fala isso quando sai.
minha mãe tem medo
dos perigos da Cozinha
eu mesma já vi um porco morto em cima da pia.
duas horas depois a gente comeu aquilo, nem parecia o de antes, no prato ele estava quente e rosa
na pia bem mais pálido
será que é o medo? de virar comida. eu te entendo, mister Porco,
eu também fico pálida quando a minha mãe levanta a mão pra bater na minha boca, depois que ela bate eu fico rosa
e quente
igual você
mas eu te como mesmo assim
(garfo na pele
a boca cheia)
já o meu de pelúcia eu nunca comeria
porque eu sei que ele também não faria isso comigo
e a gente tem que confiar um no outro pra dormir junto do jeito que a gente dorme toda noite.
demos as mãos, meu porco e eu, depois que a minha mãe saiu.
subimos até a laje
de lá dava pra ver o tanto
de telhado que existia pelas ruas 5, 11, 17.
eu falei pro porco,
-isso aqui
é o Mundo
não é só o nosso quarto não
debaixo das cobertas onde ficamos conversando até tarde
e depois acordamos arrastados
pra ir pra escola, na verdade só eu, né?que você mora no quarto
estuda, pensa
tudo lá
queria que minha vida fosse assim também.
-mora em mim então. – ele disse.
-morar em você?
como?
-você não vai gostar.
-fala.
-você vai ter que fazer comigo igual sua mãe faz com o porco na pia.
-te comer?
-não. me abrir.
me abre
e fica morando na minha barriga
ou em outros lugares, você que sabe, pode morar nas patas
ou no cérebro.
-pra sempre?
-é. eu acho que você vai aprender mais coisas dentro de mim do que no colégio. porque lá é muito conhecimento mas ninguém aprofunda nada. dentro de mim você vai ficar bem aprofundada.
–humn.
mas como eu vou ver os telhados aqui da laje? eu gosto muito de fazer isso
-pelo meus olhos, ué.
quando você quiser me avisa
eu subo até aqui
e pronto. como você vai estar morando em mim tudo o que eu ver você verá também.
-mas seu olho é só um buraquinho.
-o seu também. ou você pensa que está vendo o mundo todo?
você vê só até onde o olho alcança
e a partir do momento que você escolhe olhar uma coisa
você tá deixando de olhar pra milhares de outras, é assim em qualquer lugar e pra todo o sempre
morando em mim pelo menos você não precisa mais ir pra escola
muito menos apanhar na boca.
-você tem razão,
hoje você tá cheio
de razão.
-vou ficar ainda mais depois que você morar em mim.
-vou pegar uma faca.
-tesoura é melhor.
(a menina dispara
pra cozinha
enquanto a mãe na sessão de frios
procura a validade de um queijo)
*
A briga
fechei a porta do quarto quando te ouvi chegando
guardei o livro, apaguei as luzes
tratei de ficar
imóvel. atenta
aos sons vindo da
cozinha
a geladeira aberta, os sapatos que você tirou.
a água
preenchendo o copo
a boca no
copo
seus passos
no corredor
meus olhos muito prontos
pra fingir um sono
profundo
assim que você abrisse a porta porque
eu sabia que você abriria
a porta.
foi quando senti o peso
da sua mão
descendo a
maçaneta
e nessa hora, como eu tinha planejado,
nessa hora eu fecharia os olhos pra gente não se ver
mas.
incrivelmente.
por mais que eu tentasse
meus olhos não
fechavam, não eram meus, e a sua cabeça quente
surgiu no vão que a porta
recortou no
Espaço
tá tudo bem?
você pergunta
tá.
já vai dormir?
sim.
não vai ler antes?
hoje não.
boa noite. – você disse encostando
a porta
é incrível como a sua presença
perdura
você demora
pra voltar e ainda assim está sempre aqui na nossa
casa a sua áurea
um pouco no quadro
da santa ceia
um pouco nas
maçanetas
(quem chega sempre abre
uma porta)
no sabonete, especialmente
tem você também no telefone
sua voz moldando frases
no fundo um alívio
ouvi-las, pelo menos um sinal de que ainda estamos aqui.
tá tudo bem, filha?
nunca está.
não é nada urgente, claro, tanto que mentimos
o tempo todo
virando um Hálito e vai ficando
cada vez mais difícil ser sincero simplesmente.
pela manhã
(você na rua
trabalhando)
sozinhas a mãe me perguntou
se eu já tinha te
perdoado.
olhei pra pergunta dela
atrás a cortina
num balaço tão
mínimo, parecia
impressão. foi quando eu comecei a imaginar
o mundo daqui muitos
anos
sendo habitado por
outros seres
a gente nos livros
desses seres
e enquanto eles estudam o que tentamos fazer pelo mundo quando tivemos a chance,
enquanto isso nós estaremos nadando
no azul absoluto da não existência
então sim, respondi pra mãe,
eu já perdoei o pai pelo que ele me fez.