Quatro textos de Selmy Menezes
Selmy Menezes, mestra em filosofia pela UNESP, humana capixaba perdida no sertão paulista entre boas ideias, companhias e xícaras de café.
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Sobre o tempo
Hoje me dei conta de que não sei datar as coisas, e como tenho uma memória que não se pode chamar nem de mediana, minha vida se embaralha em meus pensamentos como um romance qualquer com as páginas fora de ordem. Viro a capa e estou no fim do livro; nada de introdução, ela mesma está lá na última página, como um final ao contrário que estranhamente não sinto vontade de espiar. No agora que se confunde ao fim da história me sinto como o personagem daquele livro mal falado do Chico, Leite Derramado, que senil ora conversa com seu pai há muito falecido, ora com sua filha pequena que na verdade é tão idosa quanto ele. Apesar das críticas, amo a vida enredada tal como Chico a descreve ali. Para além de tediosas são páginas valiosas, é livro em forma de gente e vice versa. Mas voltando à questão da datação, importa mais o início ou o fim das coisas, dos sentimentos e das histórias? Ambos importam tanto quanto o meio que os une? Há anos comecei a pintar um quadro, pendurei-o na parede depois que cansei de vê-lo empoeirando junto às telas em branco. Está sem data e já não me lembro quando fiz as primeiras linhas, ao terminá-lo não saberei quanto tempo ficou inacabado e seja lá qual for o ano indicado pelo menos a mim parecerá mentira. O tempo é um embuste, as datas cobrem histórias como cobertores assim como mentiras as verdades, e fica ali um volume indecifrável e indisfarçável.
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Sobre a vida
Preciso de melhores perguntas, de um terapeuta talvez. “Por que você não muda de vida?” e “você está feliz?” não são as questões certas. Não sei quais são, gostaria de ajuda. Mas todos parecem como eu, ou piores! Estamos perdidos, cansados, estamos tristes também muitas vezes. É difícil adequar o personagem: “Tá feio! Tá burro. Tá chato. Compassivo demais, de menos. Sarcástico! Bobo. Sombrio! Excessivamente alegre…”. Quanta merda temos de aguentar.
O teatro é sem ensaio, cada um cria suas falas e o público pode sempre intervir. “Mas que cena horrorosa!” – podem dizer. Ao fim do dia podemos voltar para casa e chorar em nossas camas antes de dormir, e não é tão ruim quanto parece. Na verdade é. Existem muitos remédios caseiros e quase nenhum funciona. Amor ajuda, mas é paliativo,
como escrever…
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Sobre o descanso
É assim mesmo, acumulamos coisas, reais e de outra ordem. Dessas últimas a tristeza é a que mais ocupa espaço quando se está com a alma abarrotada. Tristeza é como um móvel enorme, quebrado e que não se pode consertar, um trambolho que não se pode jogar fora nem doar. Que fazer senão deixá-la num canto e de tempos em tempos limpá-la da poeira? Nada.
Dentre meus móveis sentimentais prezo sobretudo a felicidade na qual me deito como num perfeito divã. Pouco importa os detalhes, as explicações físicas e metafísicas, estéticas, políticas – deitar o espírito em algum lugar é o que importa. Deitei-me numa conversa dias atrás, numa conversa com meu pai. Preciso dizer três coisas, ele disse:
– Oro por você todos os dias, normalmente ao acordar. Se eu desaparecer ou morrer, está tudo bem entre nós. Há um lugar seu em minha casa, para o qual pode ir, partir e retornar.
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Carta
Lembro perfeitamente daquela noite, dos vidros embaçados, do seu olhar de decepção e surpresa quando confessei ser casada, transamos tão bem naquele carro… nunca imaginei que alguns anos depois estaria aqui, mordiscando um ciúme estranho e alimentado uma paixão meio manca. Como cobrar quem não nos deve nada? Não fizemos nenhum acordo, por isso preferimos escrever no conforto de nossas escrivaninhas ao invés de correr pela rua declarando aos berros que nos gostamos o suficiente.
Entre confissões mais ou menos falsas lhe contei coisas profundas. Desnecessariamente expus meus maiores vazios, por que fiz isso? Agora ele os rumina e escreve, como todo literato. Foi assustador me enxergar em suas linhas, ver-me por outra perspectiva. Senti pela primeira vez o que sentem todos sobre os quais escrevo – um misto de alegria e tristeza, orgulho e vergonha, senti-me invadida, mas também percebida, estetizada e benquista.
Escreve tão bem quanto transa, sabe romantizar o cheiro ruim da vida, é um poeta. Não é todo literatura, mas será um dia – ele ainda é jovem. O que me agonia é o fato de que não estarei lá para ver suas ideias e pernas engrossarem. Gosto da infantilidade de suas coxas. Será que um dia ele deixará de ser um menino gostoso e se tornará um homem digno e chato?
Nunca disse a ele que gostaria de assistir em sua companhia ao mar engolir o mundo, mas fico feliz que tenha tido a capacidade de captar esse meu pensamento. Vontades são como borboletas, quando saem voando não voltam a pousar em nossas mãos.
Deveria ter lhe dito mais verdades. As palavras não mentem, mas espantam borboletas e por isso as evito quando em determinadas circunstâncias. Não sou poema nem literatura, sou apenas um ser humano excitado, sou toda vontade, inteira falta. Quero aquele menino. Está vendo? Uma borboleta escapou… Que escapem todas! Quero lambê-lo, quero escutá-lo, quero saber de onde veio e se fugiria comigo, quero chupá-lo de manhã e morder sua bunda, quero que nos encontremos sozinhos naquele bendito bar.
Como não amaria alguém com quem tenho um caso literário?