Raízes nos tempos – celebração dos 300 anos de Cuiabá
Raízes nos tempos é o tema escolhido para a série de dez poemas de escritoras que produzem em Mato Grosso. Um panorama de raízes diversas, raízes aparentes e subterrâneas, que se espalham através dos tempos, meios e solos. Todos os poemas se compõem de matérias brutas absorvidas em escritas femininas. Em cores e cantos, as pinceladas da artista visual Ruth Albernaz vibram em possibilidades de voos junto aos poemas. As sinfonias em ciclos são retomadas a cada nova (re)escrita, a cada nova (re)leitura, a cada nova esperança de vida – raízes nos tempos.
Poemas: Florada de Juçara Naccioli, Periférica de Luciene Carvalho, Saturação de Marta Cocco, Há(tempo)ral de Pacha Ana, Fardo de Marli Walker, Esporófito de Divanize Carbonieri, Moça de Rapper Azul, Ruído singular de Lucinda Nogueira Persona, Maternidade de Anna Maria Moura e Não estarei onde me termino de Ângela Coradini.
***
Florada (Juçara Naccioli)
Minhas raízes são firmes
Seguras e de cheiro bom
Essência curadora,
Auto curativa.
Embrenham-se solo a dentro
À procura de vida
Suprema Guia
Supremacia
Meu tronco sinuoso tonificado
Não mais enverga, não quebra, nem cai.
Minha seiva hematoide,
Nutre minhas galhadas
Engrenhadas pela complexidade
Daquele que é ‘modelaDor’
E se fez senhor
Meus cachos cheirosos
Cachos de flores bonitas
Bagunçados e esvoaçados
Pelas tempestades necessárias
Das estações psíquicas
Tornaram-se resistentes
Depois de uma vida pungente
Minha sombra frondosa
Em algum tempo ressequida
Agora sinala a risada
Propicia frescor
Respeita minhas lágrimas
Por ordem da vida
Ampara e devolve
Amor
Hoje será para sempre primavera.
*
Periférica (Luciene Carvalho)
Não sou nova
nem sou antiga,
sou inteira.
Na astrologia chinesa
sou serpente de madeira.
Pra rebater dor no corpo
tomo chá da casca da aroeira;
quando é pra falar,
falo à minha maneira.
Já é madrugada,
não dá nada
se alguns consideram
estes versos
apenas uma besteira…
Poesia é assim mesmo:
começa e não tem fronteira.
Costumam considerar,
classificar, rotular
– sei lá –
meu verso como popular…
Já tá passando da hora
de eu fazer a correção:
meu verso é periférico;
pulou o muro,
entrou pela janela,
veio pela entrada de serviço
– eu sei disso.
Meu verso é pardo
como meu país.
Meu verso é onde guardo
o olhar que tenho do mundo
que vejo da janela
do fundo
do ônibus,
da calçada
andada a pé.
Meu verso tem pé na rua,
sua sob o calorão.
Não tem ar-condicionado,
não tem horário marcado,
meu verso é feito à mão.
A mesma mão
que faz a comida
faz a rima,
faz a compra no mercado
como dinheiro contado;
quando passa o cartão:
débito, por favor.
Meu verso é meu maior amor,
mas sabe o susto na conta
que chega da água e da luz.
Meu verso faz corre pra pagar:
se vende em livro,
se vende em show.
Meu verso não é só difusão literária;
é carga horária,
conta bancária,
trabalha por mim.
Na periferia é assim:
tem que trabalhar
pra não cair pro crime
e o verso assume
seu papel:
meu verso
é meu fiel,
minha esperança,
meu sonho,
meu sustento,
meu alento
e meu tamanho.
Sou poeta
no vazamento,
na telha precisando de conserto,
na batalha pra comprar uns panos.
A identidade periférica
no passar dos anos
desprende-se da vergonha,
desfaz-se da cor tacanha
e se assina;
assassina a barreira social
que me limita
e grita
pra minha escrita:
é bonita
é bonita
e é bonita.
*
Saturação (Marta Cocco)
Nada mais há de original no mundo.
Registram-se nascimentos e mortes
a cada segundo.
Noticia-se simultaneamente
perdidos e achados.
A poesia se debate
por um possível novo tema
e satura-se cada vez mais de solidões.
Quando chover,
talvez a paisagem se renove.
*
Há(tempo)ral (Pacha Ana)
É preciso respeitar os tempos..
Tempos daqueles que ainda precisam dessa contagem “física” das horas,
dos dias,
semanas,
meses,
anos..
momentos!
É preciso respeitar.
É via de mão dupla mas tem intensidades diferentes pra caráter, personalidades, e almas distintas.
Uma moeda de cara e coroa,
vários pesos
inúmeras medidas.
É preciso respeitar os tempos!
O tempo que leva pra se curar de uma dor que parece ser incurável mas que todos insistem em apressar o processo, pular as etapas,
É necessário atravessar na faixa!
É preciso respeitar os tempos!
É contramão seguir na direção mais curta,
Não adianta tentar trapacear na disputa do esperar e aceitar, se acalmar pra não surtar, é preciso respirar!
Nesse caso, as colisões dizem respeito a altas velocidades.. de quem se esquece que é necessário respeitar os tempos, de verdade.
Porque os processos da alma levam tempo, e isso já é certo
E de tudo que temos, esse tempo é o menos incerto
Desde que o mundo é mundo, leva bilhões de anos pra formar algo concreto
E olha onde estamos? Tentando apressar e trazer o futuro pra mais perto..
Porque não ser mais espertos?
É preciso respeitar os tempos..
Os tempos que passaram, os de agora e os que ainda estão por vir.
É preciso!
Preciso como o ontem existiu, o hoje está sendo e o amanhã ainda vai surgir.
É preciso!
Como o relógio marca o tempo sem se perder, contando segundos, minutos, sem nem todo mundo entender, perceber, reconhecer ou merecer..
Tempo tempo tempo tempo tempo.. és um dos deuses mais lindos..
Tempo tempo tempo tempo tempo..
É preciso respeitar o tempo do outro pra não cair na armadilha do ego que deixa o ser humano cego,
surdo e mudo..
Não só por um segundo, mas por uma eternidade
E é vaidade
Diagnóstico em massa numa sociedade covarde.. que não respeita o tempo de cada um
Um por um
Se perdendo um a um..
Tempo que pra uns é irrisório e pra outros é torturante
As vezes é afago, ombro amigo, mas as vezes é cortante
O mesmo que acaricia, soluciona mas também confunde.. num mesmo instante!
Tempo que é amor, mas também ausência
Que ameniza a raiva, mas as vezes aumenta a carência
Que molha a terra, mas também seca a essência
Que ajuda e machuca, com a mesma frequência
Tempo que fala alto e ecoa longe
Espera pacientemente como monge
Não desespera, não apavora, é igual deixar acontecer naturalmente pra não ver ninguém chorar
Mesmo que chorar as vezes seja sinônimo de aliviar
É preciso respeitar os tempos
Aqueles das feridas não cicatrizadas
Dos desamores e das traições
Do ego ferido e dos cacos de vidro nos corações
É preciso respeitar os tempos
Das idas e vindas
Das curvas
Das retas
Das voltas do mundo!
É preciso respeitar os tempos
O meu, o seu, os nossos..
Tempos de paz e de guerra,
Respeitar!
Que é a única coisa atemporal nessa terra!
*
Fardo (Marli Walker)
equilibrar-se
sobre o movediço chão
sobre o estar ou não
sobre a fina corda
do sem sentido
o arredio e faminto sentido
tão perseguido em vão
(o equilíbrio cansa tanto)
*
Esporófito (Divanize Carbonieri)
o machado no pescoço
osso passado na lâmina
a anima solta e valente
rente ao nodo da garganta
se agiganta mais ao golpe
torpe mas gentil da foice
que ceifa a linfa da vida
entretecida na carne
no cerne rosa da fé
um igarapé de sangue
mangue verde do espírito
esporófito da sina
assassina do vivente
*
Moça (Rapper Azul)
A minha história é a minha força
Não desista moça
Não é o fim não vá pra força
Não desista moça
Só por hoje moça
Eles vão se frustrar
Porque hoje não vou parar
De escalar
Esses degraus se eu cair vou me levantar
A poeira
Vai embaçar os olhos de que tentar me derrubar
Minha Vitória incomoda muita gente
Força moça foco e siga em frente
Mordendo as corrente só eu sei o que passei
Esta história me pertence
Seja sua referência mina
O seu passado é responsável pelas suas conquistas
Não fico perdida
Num mundo cheio de mentiras
Me exclui porque não faço parte da família margarina
Que ironia? Trabalho pra caramba pra colocar o pão na mesa todo dia
Enquanto o mundo está em depressão meu remédio Tarja Preta é a minha própria poesia
Um curativo pra tua ferida
Buscando energias para sobreviver
Querem falar da minha caminhada mas não sabe o procedê
Vai entender
Fulano fala mal
Beltrano fala bem
Não escrevo poesia, Rap, Reggae para agradar ninguém
Não sou paquita de ninguém
Mas quem sou eu pra falar da caminhada de alguém? A verdade está com quem? Me respeita
Eu te respeito que tá tudo bem
Falou que os preto tem necessidade de atenção
Vou te explicar então
É muita tensão na minha quebrada
A polícia chega e mata
A mãe reza pra filha chegar bem em casa
Que pega o busão de madrugada
Se tu não sabe
Não abre a boca pra nada
Quero mesmo
Chamar toda atenção
Eu sei como é difícil a morte do irmão
*
Ruído singular (Lucinda Nogueira Persona)
Caminho pelo parque
ao músico crepitar das folhas secas
(o verso é o encontro repentino
de um ruído singular?)
Com outros pés segue a tarde
compondo secretas pegadas
E vai também o vento
não bem andando (ele corre)
a rasgar-se nos entraves
Persistente, invisível
no seu estilo de vento mesmo
que passa e não volta
que passa e não volta
Convivo com tantos modelos!
*
Maternidade (Anna Maria Moura)
Nos muros, nos outdoors, nas propagandas me pregam modelos de liberdade…
Liberdade é ter, liberdade é consumir.
Mas não me aceitam ser uma mulher livre de um homem ou casamento,
por estar quase chegando aos trinta e ter filho pequeno.
Se ela escolhe não ser mãe é egoísta,
se é mãe solteira carrega o dobro de peso nas costas,
de ter sido abandonada pelo parceiro e a culpa que a sociedade bota, é só dela.
Ninguém cobra não aquele bródi que não ajuda e não paga pensão…
E o jogo segue assim, pra elas, a culpa, pra eles, a desculpa.
A mãe quase surta, ela ajuda em casa, trabalha e estuda.
Se ela é casada e o marido não ajuda,
só não é chamada de puta,
mas também é sozinha nessa jornada dupla… múltipla…
Aguenta os perrengues, o filho que ficou doente,
e se culpa por cada dor que ele sente.
O patrão acha que ela mente
quando entra com atestado do filho novamente.
A vida não perdoa e tem sempre aquele “gente boa”,
que nunca aparece pra visitar ou ajudar,
mas acha que tem direito de perguntar com quem eu deixo a criança,
como se eu fosse loka.
A deusa que perdoa,
mas um dia, eu ainda soco um pé na cara dessas pessoas,
que não fortalece o rolê,
que não tá junto na hora do vamo vê
E ainda acha que tem direito de ditar como devo criar, como devo fazer…
Quem ajuda no corre, não tá reclamando
E se eu for falar de tudo que me incomoda na maternidade,
eu vou levar um ano.
Então encerro meu verso,
mas sigo lutando, amando e sonhando
com dias melhores pra todas que transformam suas dores em luta,
suas lutas em arte e seguem nas suas labutas batalhando…
*
Não estarei onde me termino (Ângela Coradini)
é sexta-feira
a vida me rouba a paz
aquele vestígio
me pede espaço
e eu procuro ar
embriago a hora de vinho
paro na coragem que fraqueja
me deixo quieta
e profunda
num silêncio sem resposta
o devaneio me come o sono
expõe minhas ruínas
o dia me rouba a calma
pede meu tempo
ao tempo
mas não posso esperar
sou só um vento
um sopro
não vi onde “me começo”
não estarei onde “me termino”
não sei fazer pedidos
nem dar eternidades
deslizo fulminante
ao contrário
resiste esse coração
que queima
devagar
entregue
sincero
e sem rumo.
Olga
Linda a seleção poética das mulheres!!!
Lucinda Nogueira Persona
Enquanto contemplo, através da cortina de vidro, os edifícios da extensa capital mato-grossense… enquanto observo o interminável céu apertado de nuvens, neste 8 de abril de 2019, 14:00 horas… tomo uma postura de doce ansiedade por mil coisas e também uma postura de especial gratidão por essa homenagem, Lívia Bertges e Ruído Manifesto, fortalecendo a poesia. Muito grata, neste momento de grande sentido.
CARLA cUNHA
Poesia lapidada e vestida de seda. Não conhecia a Lívia, fiquei encantada.