Redenção – Parte 2
Na madrugada
Pertubada por um pesadelo, Nina acorda quase sem conseguir respirar, não vê Clarice na sala. Pensa que talvez ela tenha deitado no quarto, levanta tentando se recompor do pesadelo e nada encontra. Nenhum sinal dela ou de sua passagem pelo apartamento, há somente um copo de uisque na mesa de centro, a porta continua trancada. “Não havia como ela ir embora sem deixar a porta aberta”. Recorda do pesadelo de ainda há pouco, sente-se muito pertubada para dormir. Quem seria? Apesar de ter participado quase que voluntariamente da cena anterior não se sentia confortável com o fato dela ter sumido da mesma maneira como apareceu: sem deixar rastros.
A brisa fresca da madrugada invade o apartamento, ela nem percebe a sacada aberta. Não consegue desviar o pensamento do pesadelo e muito menos de Clarice. Os dois acontecimentos são tão reais e tão deslocados do momento presente que já não tem ideia do que é concreto ou não. Seu corpo cansado contrasta com a mente agitada, sente que precisa dormir, assim como precisa descobrir tudo sobre aquela visita.
Tenta achar alguma posição na cama, a luz fraca do abajur produz sombras na parede branca do quarto, não consegue desviar o olhar do teto. Tem medo de dormir e voltar ao pesadelo. Nunca havia tido nenhum sonho nesse sentido, logo ela que sonha bastante. Aos poucos vai se rendendo ao cansaço, o sono finalmente a invade.
Em seu pesadelo
“Não vejo a hora de sair desse quarto branco, é tudo tão estéril, me sinto alucinando entre essas paredes, papai continua a me observar da porta, engraçado como ele envelheceu rápido, não entendo o porquê dele me manter aqui, será que não vê o sofrimento que causa a mim e a ele? O que fiz? A última coisa que me lembro é daquela dor de cabeça infernal e de acordar aqui, mas isso já faz tanto tempo. Falo, mas eles não podem me ouvir. Grito tanto que sinto minha garganta arranhar, mas nada deles me ouvirem, estão totalmente alheios à minha angústia. Eu quero sair dessa cama, ainda não entendi porque estou amarrada a ela. Meu desespero me leva a debater meu corpo contra a cama, como se estivesse anestesiada nada sinto. O que está acontecendo comigo? Meu despertar causa comoção ao meu redor. Papai corre com os enfermeiros ao meu encontro tentando conter minha convulsão. Não tenho mais controle do meu corpo, fui expulsa de mim.”
O despertador toca incessantemente, pela primeira vez agradece por ser acordada às 6 em um domingo. Dessa vez o pesadelo foi mais real, tanto que sente os punhos doloridos, como se realmente estivesse amarrada à cama, sua visão está turva pela exposição constante à luz clara do quarto, seu corpo já confunde o sonho com a realidade. Sua cabeça lateja, procura um analgésico pela casa. Sabe que deve existir um em algum lugar, era sempre acompanhada por crises descomunais de enxaqueca. Enquanto procura pela cozinha, dá de cara com a garrafa de uísque pela metade, no mesmo momento se recorda de Clarice. O pesadelo a havia atordoado tanto que tinha se esquecido completamente daquela estranha visita. “Hoje é o primeiro sábado do mês, deve ser o plantão do Luis na portaria”, pensa em voz alta enquanto coloca o roupão e se dirige até a entrada, talvez o porteiro consiga ajudá-la a desvendar esse mistério. Depois voltaria ao analgésico e ao pesadelo. Chama o elevador, caminha de um lado para o outro sem desviar o olhar do painel que acusa que o mesmo encontra-se parado há uns bons minutos no 13º andar. Está impaciente, seu corpo treme, a cabeça dói mais do que nunca, nem terminou de procurar o remédio quando lembrou de Clarice e foi invadida por essa urgência de descobrir quem ela era.
Resolve descer correndo pelas escadas, percebe que está descalça mas não voltaria ao apartamento. Faz uma força brutal para abrir a porta corta-fogo, sempre a achou muito pesada e difícil de abir, porém hoje é como se pesasse 7 toneladas. O painel do elevador não se moveu, não olha para trás e se lança escada abaixo. Corre como se disso dependesse sua vida, mas são muitos lances na estreita escada, mesmo que ela não queira admitir. “São só 9 andares, não pode ser tão ruim assim”, mas seu corpo apresenta sinais de fadiga logo nos primeiros andares. Perde o fôlego, a mesma sensação que teve quando acordou do primeiro pesadelo. Seu corpo cambaleia, sente vertigem, está sendo perseguida pelo medo do que pode descobrir, porém, nada irá faze-la desistir. Quando dá por si está parada na porta do térreo.
Em seu destino
_ Dona Nina!, o porteiro a encara incrédulo com a imagem que vê _ Aconteceu alguma coisa no apartamento?
Nina mal consegue articular uma frase, sua mente confusa não para e ela não sabe como perguntar a Luís sobre Clarice.
_ Toma, um pouco de água faz bem nessas horas, diz Luís, já estendendo a mão com o copo cheio.
_ Ontem à noite você liberou uma moça para subir ao meu apartamento. Você sabe me dizer quem era? Como você não anunciou achei que ela me fosse intima, mas não consigo lembrar quem é. Nina diz numa voz debilitada pela descida descontrolada.
_ Dona Nina, a senhora está bem? Não liberei ninguém para subir não, e nem me lembro de uma visita constante que a senhora receba. Mas se alguém entrou no apartamento da senhora sem passar pela portaria podemos ver quem foi nas câmeras de segurança.
_ Não, não precisa. Deve ter sido um pesadelo, acordei de um agora há pouco e lembrei dessa visita. Mas não tem nada de errado, desculpa por te preocupar Luís.
_ Imagina, se a senhora precisar de algo pode interfonar.
“Ela parecia tão real”, pensa em voz alta, tentando disfarçar o incômodo com a situação toda. Enquanto aguarda o elevador, que agora parece funcionar muito bem, se olha no espelho do hall e sua situação é deplorável. Seu desespero para falar com Luís não adiantou em nada, continua sem respostas e o que é pior, agora tem mais perguntas. O tempo que passa dentro do elevador parece uma eternidade, só quer chegar em casa, tomar um analgésico e um bom café e desocupar um pouco a cabeça de toda essa insanidade.
É retirada de seu transe pelo barulho da porta do elevador, chegou ao seu andar. Tudo parece diferente agora. Não pode acreditar que Clarice não seja real, mas era bem capaz que fosse parte desse pesadelo. Era isso ou assumir a condição de quem está delirando.
Em casa
Enquanto coloca a água do café para ferver, começa a vasculhar o apartamento em busca de um remédio, não é difícil achar na organização quase metódica que mantém. Espera que a dor de cabeça passe logo, não dormiu direito, porém já não tem sono. Passa um café forte para garantir que não vai dormir, alguma coisa lhe diz que se isso acontecer vai voltar ao pesadelo. Finge não estar confusa, já bastava a cena na portaria, era melhor se controlar. “Tenho quase certeza que o Luís me achou uma doida”, fala sozinha enquanto bate as pontas dos dedos na xícara quente de café, a pele aquecida pelo calor da porcelana lhe traz uma sensação de conforto. É tudo que precisa naquele momento.
Se acomoda no sofá e folheia o livro que tenta terminar pela terceira vez, dessa vez se concentra ao máximo no enredo, vai entrando na história até ser absorvida por aquelas palavras. Quando já nem lembra da passagem de Clarice, a campainha toca mais alto que na noite anterior, “será possível que agora essa merda vai ficar nessa altura?”, pelo olho mágico nada encontra. A campainha toca outra vez ainda mais alto. “Inferno!”, não quer abrir sem ver quem é. A campainha toca mais uma vez, ela não reclama, pode ouvir o barulho da chave girando no miolo da fechadura, seu coração palpita. Simplesmente gira a mão no trinco.
Não acredita, parado na sua frente está o pai, tal qual no pesadelo. A mesma cara de cansado, o mesmo rosto envelhecido. Ele fala, mas no seu ouvido só há um zumbido. Suas pernas tremem, sente que vai sucumbir, deve admitir que não está em seu juízo. Recua dois passos e quando vai fechar a porta percebe que já não está mais em seu apartamento. Está no mesmo quarto do sonho, ou talvez realidade agora.
_ Nina, você precisa acordar, minha filha. Fala comigo, me diz como posso te ajudar.
_ Pai? Você pode me ouvir? Sua voz é quase um choro.
Reconhece a voz do pai, viva como o canto de um pássaro. Agora não só o vê como o escuta, nitidamente, mas nada compreende como se fosse latim. Ri, não sabe por que, mas gargalha. Sente uma inquietação, acelera o passo dentro do quarto do hospital, anda de um lado para o outro. Seu olhar não está mais aqui, gira em transe pelo pequeno espaço. Tropeça na cama, cai sentada.
_ Quem é Clarice? Eu preciso descobrir quem é Clarice? Repete, quase como um mantra.
Gargalha e repete. O pai senta ao seu lado, com os olhos marejados ainda não perde as esperanças de ter a filha de volta. Pela primeira vez em meses, viu novamente o brilho em seus olhos.
_ Você vai acordar, Nina. Eu ainda vou te trazer desse pesadelo.
A campainha do horário de visitas toca, mais alto que antes somente para Nina. Ela encosta a cabeça no peito do pai, como quando era criança e recebe um beijo na testa. Algo dentro dela sorri para a realidade.