Restos quase inéditos de uma entrevista
Íntegra das respostas dadas em 2016 ao escritor e jornalista Rodivaldo Ribeiro. (22 de novembro de 2016)
Rodivaldo Ribeiro: Confesso ainda não ter perguntas elaboradas o suficiente, mas gostaria que você mandasse uma biografia breve, dizendo onde nasceu e foi educado. Há quanto tempo seus pais vivem em Mato Grosso?
Matheus Guménin Barreto: Meus pais vivem em Mato Grosso há quase 30 anos, não sei o número exato. Minha mãe é paulista e meu pai é mineiro. Nasci em Cuiabá no dia 3 de outubro de 1992 (3 de outubro é, aliás, o dia da reunificação alemã) e estudei nos colégios CEI, Salesiano São Gonçalo e Maxi, sendo que em 2008 passei um mês estudando língua inglesa em Hastings (Inglaterra). Fiz graduação em Letras Português-Alemão na USP, onde hoje desenvolvo minha dissertação de mestrado na área de tradução do alemão. Durante um ano da graduação morei na cidade de Heidelberg (Alemanha), onde cursei parte do “bacharelado em Germanística e Anglística”. Durante os últimos anos estudei, além de alemão e inglês, francês, chinês, um pouco de espanhol e um pouco de italiano. Ainda quero aprender árabe, russo e iorubá.
R.: Qual o nome do seu primeiro livro, quantos foram lançados, desde quando escreve? Sei que é uma pergunta difícil, mas o por que de escrever?
G. B.: Por estranho que pareça, a primeira pergunta é a mais complicada, a segunda nem tanto. Publiquei até 2013 três livros, que resumo da seguinte maneira: um extremamente complicado, um extremamente simples e um terceiro que tentou ser a síntese dos dois, mas que, salvo uma dúzia de poemas, falhou na intenção. Sinceramente não acho que nenhum deles seja péssimo, mas também sei que nenhum deles é excepcional. Isso significa que não acho que eles valham realmente as horas gastas na leitura, mas também não há nada de desastroso neles.
Por outro lado, desde 2013 trabalho num livro que terminei em setembro de 2015, assim que voltei da Alemanha. Estruturei o livro a partir de 11 ou 12 cadernos de anotações, sendo que só digitei por volta de um terço dos poemas manuscritos. Imprimi então uma primeira versão, que tranquei numa gaveta por seis meses. Ao fim desses seis meses reli os textos e cortei o número de poemas do livro mais ou menos pela metade. Trabalhei mais um pouco nessa versão reescrevendo versos ou estrofes, cortando ainda um ou outro poema até que o manuscrito me parecesse não ter mais nenhum texto sobrando, nenhum texto que não precisasse estar ali. Esse é o livro que tenho pronto agora, e depois de levá-lo a meia dúzia de amigos, a uma professora de literatura da USP e a uma grande escritora de Mato Grosso, decidi publicá-lo. Estou pensando agora nas opções de editoras. Esse livro é a única coisa que já criei que me deu a estranha sensação de estar (o livro) à altura dos autores que eu mais admiro (e isso é muito, sabendo que sou meu pior inimigo nessas avaliações). Enfim, é possível que no final do ano que vem ou início do outro o livro esteja nas livrarias.
Passando às suas outras perguntas, escrevo poesia desde os 14 ou 15 anos. Escrevi meu primeiro poema depois de ler “O canto do guerreiro” de Gonçalves Dias e ficar hipnotizado pelo ritmo do poema. É estranho que o primeiro poema tenha surgido depois dessa leitura, já que Gonçalves Dias não é um dos meus autores favoritos nem nada assim. O que faz sentido é o fato de o ritmo do poema ter me chamado atenção: tenho para mim que o ritmo é o aspecto mais importante da poesia, talvez até a coisa que faça a poesia ser poesia.
Quanto à última pergunta, ela é tão complicada que acaba ficando simples. Explico: é tão complicada que já nos faz desistir logo de cara de dar uma resposta completa, tira o peso d’A Resposta Correta dos nossos ombros. Sempre me perguntei: “Por que escrevo? E por que escrevo logo poesia?”. Escrevo para conhecer, para saber, notar. A poesia é para mim algo como a ferramenta com a qual posso cavar a terra, cavar o homem. A poesia por si só não se justifica, pelo menos não para mim (e algumas pessoas podem viver sem se justificarem; eu, não); a poesia é o “meio” através do qual quero chegar a outro ponto, ao susto da realidade, ao susto daquilo que o homem é. Ela só se justifica para mim como ferramenta. Acredito quase que com religiosidade (eu, que não tenho religião) que algumas regiões da natureza humana só podem ser acessadas através da arte – tanto pelo criador quanto pelo leitor/ouvinte/espectador/etc. A arte não é descanso, desabafo. A arte é movimento e cansaço constante, enfrentamento. Só acredito na arte que de alguma forma nos puxa o tapete, nos faz notar com surpresa algo em nós, nos outros, nas coisas, nos lugares. Por isso escrevo.
R.: Também preciso saber os horários em que costuma fazer isso, a rotina de trabalho, onde encontra os temas.
G. B.: Costumo ter um caderno qualquer, pequeno, que caiba no meu bolso. Escrevo nele os poemas, os pedaços de poemas ou as ideias a serem trabalhadas mais tarde. A montagem e a estruturação de um livro costuma ser uma etapa posterior para mim (apesar de eu já ter alguma ideia dessa estrutura, uma ideia vaga que só se organiza e concretiza quando vou montar o livro). Tudo é tema.
Acredito muito no método, na precisão, na falta de pena para consigo mesmo – pelo menos na hora de montar um livro. Tudo que não for bom precisa ser excluído, ainda que o livro fique pequeno no final. É melhor um grande livro pequeno do que um pequeno livro grande. Acho que parte dos meus erros com as três tentativas de livros anteriores foi a falta de cortes. É preciso cortar, cortar e cortar.
Agora, é preciso lembrar que esse é o meu modo de escrever. Funciona para mim, talvez não funcione para os outros. Não há um modo certo de escrever – e por isso pensei em pular essa pergunta; dizer o que eu faço pode desanimar outros autores que talvez precisem escrever de outras formas. Essa advertência é especialmente relevante no caso das minorias sociais: uma escritora e/ou um escritor que se identifiquem com uma minoria social talvez precisem expor suas vivências e as questões que mais os afligem, e ao lerem um conselho como “cortem, cortem, cortem” talvez acabem se inibindo e guardando coisas que precisam por para fora. Talvez. Não sei, realmente não sei. Não é a minha experiência social. Ou seja, tudo o que eu disse sobre meu modo de escrever digo do alto dos meus privilégios sociais, e talvez nada disso sirva a uma outra pessoa. De qualquer forma, fica o registro para o caso de ajudar.
R.: Para você, Matheus, é fácil ou difícil escrever? Há algum tipo de angústia envolvida no processo de criação?
G. B.: Não vejo o “escrever” nem como fácil nem como difícil. A escrita é o meu modo de me aprofundar no mundo e na condição humana. Se eu fosse cantor, o modo estaria na voz; se fosse pianista, no piano; se fosse dançarino, no corpo. Não tenho nenhum grande amor pela poesia, nenhum fetiche pelo objeto livro. Uma vez perguntaram ao pianista Glenn Gould como era sua relação com o piano, e sua resposta foi mais ou menos a que eu te daria, Rodivaldo: “O piano não é um instrumento pelo qual eu tenha nenhum grande amor, mas o toquei a vida toda e ele é o melhor veículo que tenho para expressar minhas ideias”.
*
CANTO DE DISSOLUÇÃO
Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.
Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.
Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.
Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.
Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.
*
SE QUESTO È UN UOMO
Como é possível
um homem?
Pra quê? Pra que
lhe deram nome?
Que faz o homem?
Se, mal existe,
já some?
Como é possível
haver um homem?
Melhor seria
tivessem gasto
a Criação
em rios, em pedra,
em bicho, em prado,
em homem não.
O homem nasce,
vê, come e morre
já sem perdão.
*
O ÚLTIMO POEMA OU RIO LETE
A cabeça no limbo do tempo.
Descansar já sem rosto e sem nome
e, deitado no córrego insone,
esquecer-se do bicho, do homem
e, com o tempo, esquecer-se do tempo.
*
NESTE TEMPO
Neste tempo de horror
neste tempo
neste tempo sem tempo
de mãos crispadas e inverno nos dentes
de risos que não são
– só o amor que há é o dos bichos
e o das memórias frescas,
recém-cortadas.
*
TUDO ESTÁ POUSADO NOS OBJETOS
Tudo está pousado
já nos objetos.
Batendo pulsando leve
tudo está já nas coisas
à espera do toque
um só
que o abra em flor
e estrume.
A pedra o cão o pássaro
o carro a moto o prédio
[olha olha agora]
tudo
já contém o que resultará
da matemática da poesia
equacionada por um toque.
*
PARA O POEMA DESTA PÁGINA
“Dedicado a Matilde Campilho, que sem saber me ensinou.”
para o poema desta página:
a – abrir a janela mais próxima
b – faltando a janela, criar uma
c – ver: flor. ou muro. ou golfo. ou merda. ou um casal descobrindo o mapa-múndi no corpo um d’outro.
d – repetir os passos anteriores.
*
INÚTIL
Inútil
inútil o gesto o plexo o beijo
inútil o desejo e o não-desejo
[igualmente
Inútil inútil o salto e a pausa
Inútil a mão no ombro alheio
[e próprio
Inútil soberanamente inútil
o gesto o plexo o beijo
nas campinas afiadas de verde
nas geometrias escuras da mente
e essa vontade de amar.
[Imagem: anônimo. King Vortigern and the Prophet Merlin]