Um conto de Rodrigo Luis
Rodrigo Luis (São Paulo, 1997). Estudante de Letras e Assistente Editorial. Escreve. Conta com poemas publicados na revista eletrônica A MARgem (UFU). Grito Imóvel (no prelo) é seu primeiro livro de poemas que será publicado pela editora Urutau, em 2019. Nunca fez nada que alguém não quisesse fazer. Finge. Escreve.
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Tratado das aves migratórias
Primeiro, iniciar a tentativa: listar o tema: aves migratórias. Depois, falhar. A conexão com a internet transforma as universidades em prédios. Partir.
Certas aves migratórias viajam numa velocidade de noventa quilômetros por hora, é muito importante escrever os números todos por extenso. Ler rápido demais pode causar um descolamento da retina e se todo mundo andar cego por aí é bem capaz de que o presidente seja eleito. Sento para escrever. Não tenho tempo de escrever, então. Conversava com uma ave migratória quando. Nota: aves migratórias não podem ser estrangeiras. Que língua fala um estrangeiro que é sempre estrangeiro?
Conheci uma mulher que se dizia estrangeira. Algumas aves migratórias viajam por cerca de vinte mil quilômetros durante a migração. Conheci uma mulher estrangeira que. Conheci uma mulher que precisa de outro nome. Conheci uma mulher que se chamava Conheci uma mulher que era uma ave migratória rara natural e sincera. Tornei-me um ornitologista.
Ornitologista quer dizer: homem decadente com adoração pelo próprio corpo e síndrome da miséria pagã. Vou remover todas os crucifixos que deixaram em casa e receber a ave num cômodo vazio.
Uma ave-mulher migratória que não pertence a lugar nenhum: nascimento: infância: traumas: eu. Olha só que aquela ave é bem diferente das outras, querida. Como assim? Em primeiro lugar é preciso fazer uma lista, por isso vou abrir a gaveta e anotar os dados psicoanalíticos que posso observar enquanto vivo grande ornitologista.
Nascimento: um de janeiro de dois mil e dezenove – vale do paraíba.
Infância: havia lido aquele livro do escritor português em que a mãe arranca com a faca o seio da filha.
Traumas: mulher.
Eu: incomunicável.
Bebida preferida: impossível catalogar.
Música favorita: impossível catalogar.
Restaurante favorito:impossível catalogar.
Maneira preferida de se matar: aos poucos, culpando os ornitologistas.
Objeto favorito: a cabeça entalhada dos ornitologistas.
Talvez devesse colocar todas as listas no início das páginas. Reordenar a estrutura do conto. Remover as personagens marcantes, o cenário delimitado, a tensão quase sexual de explosão em uma epifania certeira. Remover a densidade dos romances e colar alguns artigos que li recentemente sobre toda essa literatura mediana. Sei bem que os homens decadentes só poderão escrever no futuro.
Por isso, entendê-la. A sua família conservadora gerou seu corpo, maquinou sua dor e expulsou o seu tesão. Por isso, é essencial entendê-la. Eu já me entendendo, querida, não se preocupe. Falo português, oras. Que língua se aprende a falar quando se é sempre estrangeiro do nascimento até? Que língua fica parada durante o sexo oral? Que língua não se chama Conheci uma mulher que era uma ave migratória rara natural e sincera? Não sei se a língua do presidente Trump foi amarrada, você pode parar de. Preciso entendê-la.
Um tratado é um estudo científico, como esse. Não há mentiras, somente ciência. Cientificamente os homens sempre amaram as mulheres, nunca precisaram de terapia, nunca brocharam e nunca perderam o controle num momento de muita emoção. Por isso, não há ornitologistas, somente Os ornitologistas. O princípio da seleção natural, outra ciência.
Começo a achar que as aves migratórias estão extinção, que os ornitologistas jamais descobrirão o som do seu canto. Os esforços para ouví-lo, cada ave engaiolada e, depois, ensinada a cantar pelos melhores regentes, não pode ter sido em vão, pode? Deus, não pode! O canto que todos os homens esperam e os ouvidos incapazes de ouvir. Deus, não. Ciência, não. Qual a palavra?
Conheci uma mulher que era uma ave migratória rara natural e sincera. Como todo bom ornitologista, me escondi, observei, e, enfim, tornei-a minha. Logo em seguida, depenei-a, cada pena cor de esquecimento joguei no lixo, cada lágrima eu dilui no vinho, cada emoção no olhar eu disse que não era eu: devorei-a sozinho sobre a mesa.
Os ornitologistas se reúnem de vez em quando, com as cabeças mais ou menos presas nos pescoços, contam suas histórias sem ninguém. Eles esquecem que todo dia as aves migratórias cantam, numa língua de eternos estrangeiros. Eternas estrangeiras.
Boa noite, querida.