São 40 graus de febre – Por Michel Yakini
A Coluna Michel Yakini apresenta crônicas, contos e poemas deste autor paulistano, atuante no movimento literário das periferias de SP.
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São 40 graus de febre
Esses dias eu estava no meu conforto moderno assistindo uma programação da Feira Literária de Iguape. A mesa contava com a mediação da amiga Elizandra Souza (Mjiba), da participação da escritora Amara Moira, do autor Júlio César da Costa e de Jerá Guarani, agricultora e liderança indígena da Aldeia Kalipety (Tenondé Porã), que tive o prazer de compartilhar uma atividade na Felizs (Feira Literária da Zona Sul).
O rumo daquela prosa mudou quando Jerá falou sobre o dessentido de manter os livros como sinônimo exclusivo de sabedoria, pois ela compreende essa montanha de livros impressos como árvores mortas. Jerá destacou a importância da oralidade como base de conhecimento de sua cultura.
Julio César destacou a força das comunidades do Vale do Ribeira na busca por dignidade social e pela preservação ambiental; e Amara Moira falou que essa reflexão movimentou sua forma de pensar os livros e o acúmulo dessa matéria, além disso lembrou do efeito da monocultura no plantio, que pra fabricar papel ergue florestas de eucalipto sem respeitar a biodiversidade.
Quando esse é um tema importante pra Jerá, Amara e Julio, isso faz sentido pra mim também. Me leva a pensar em muitas causas que podem contribuir pra essa febre de 40 graus, que a mãe terra, a pachamama, está passando. Na maioria das vezes procuro um culpado pelas queimadas, pelo desmatamento, pela especulação imobiliária sobre as terras indígenas, num movimento que desvia a atenção da parte que me cabe neste latifúndio. A paritr do paradigma vigente, baseado no consumo, a solução mais eficaz pra amenizar essa febre é comprar um ar condicionado.
Pra além de identificar a força destrutiva externa, tenho pensado qual minha responsa, seja na simples compra de um livro, ou quando aperto a descarga do banheiro no conforto do esgoto canalizado, sem considerar a poluição da água. Tempos atrás eu acreditava que a dissonância de uma ação micro não podia ser comparada com a macro destruição, e que se não temos condição de preservar e nos preservar é porque o sistema nos impede, mas esse pensamento fragmentado pode ser o xis da questão.
O médico indiano Deepak Chopra dá o exemplo dos rishis, mestres que atingem estados meditativos de alta percepção da consciência expandida, eles explicam que se a subjetividade expande todas as outras compreensões expandem junto, como num ato de acordar pra realidades que nossa mente não percebia porque estava em outra sintonia. É quando deixamos de focar somente na onda e compreendemos a totalidade do oceano. Pra um rishi o encantamento não é o fato de conseguirmos nos tornar doentes ou saudáveis, mas não perceber que estamos fazendo isso.
É como li esses dias num texto de Formigão falando do seu percurso no vegetarianismo que começa com uma intenção de proteção animal e da terra, do viés punk, até chegar numa concepção de autocuidado na perspectiva do lesbianismo. Tanto na reflexão de Jerá, Amara Moira e Julio César, quanto na de Formigão observo o exercício de uma nova compreensão a respeito de uma mesma questão, é a possibilidade da consciência expandida, que não é mais nem menos, é apenas outra vibração de pensamento.
Essas ideias me fazem recordar os estudos de José Argüelles, sobre o calendário maia (Tzolkin), a radiação galáctica e a fórmula TEMPO (E) = ARTE. Ele nos indaga sobre como a forma que vivemos há séculos mantém a terra refém de um ecocídio. Argüelles afirma que os saberes de povos tradicionais, como é o caso dos maias e dos demais povos ameríndios (e incluo aqui as formas de pensamento anti-hegemônicos) “pode ser a única solução que nos resta para atravessarmos com segurança a ameaçadora investida do militarismo nuclear e do envenenamento ambiental que agora põe em risco a existência deste planeta”.
Quando penso sobre minha situação nesse contexto sinto que ainda estou distante de uma vida que respeite a natureza e a minha dignidade como um ser natural. Sigo no caminho do melhor dentro do possível, sem canalizar o destrutivo sentimento de culpa, mas tenho certeza que esse despertar, sintonizando realidades que antes estavam adormecidas, seja o primeiro passo entre muitos pra facilitar a cura dessa febre que assola a terra, a vida e a nossa existência.