Seis poemas de Nic Cardeal
Nic Cardeal é catarinense, graduada em Direito pela UNISUL/SC, e exerceu atividade jurídica por 27 anos junto à Justiça Federal de SC e do PR. Desde 2016 dedica-se às letras e aos livros, junto à Mahatma Livraria de Expansão, em Curitiba/PR. Participou de diversas antologias de poesias, contos e crônicas, entre elas as mais recentes: Brumas e brisas (org. Cristiana Seixas, Niterói/RJ: Ed. Cândido, 2017); Antologia de poesias Mulherio das Letras (org. Vanessa Ratton, São Paulo/SP: Costelas Felinas, 2017); Mulherio das Letras – contos e crônicas – vol. 4 (org. Henriette Effenberger, Recife/PE: Mariposa Cartonera, 2017); Revista Plural – Wild Nights (org. Lunna Guedes, São Paulo/SP: Scenarium Livros Artesanais, 2017); Mulherio das Letras pela Paz – Contos & Poesias Alemanha/Brasil (org. Alexandra Magalhães Zeiner e Vanessa Ratton, São Paulo/SP: ABR Ed., 2018); Conexões atlânticas I e Conexões atlânticas II (org. Adriana Mayrinck, Lisboa/PT: In-finita Lisboa, 2018); 2ª Coletânea poética Mulherio das Letras (org. Vanessa Ratton, São Paulo/SP: ABR Ed., 2018); 2ª Coletânea de prosa Mulherio das Letras (org. Cleonice Alves Lopes-Flois, Toledo/PR: Indicto Ed., 2018); V Prêmio literário cidade poesia e III Láurea cidade poesia (org. ASES, Bragança Paulista/SP: ABR Ed., 2018); Um girassol nos teus cabelos – poemas para Marielle Franco (org. Mulherio das Letras, Belo Horizonte/MG: Quintal Ed., 2018); Marielle’s (org. Andri Galvão, São Paulo/SP: Scenarium Livros Artesanais, 2018); Sete luas (org. Lunna Guedes, São Paulo/SP: Scenarium Livros Artesanais, 2018); Redemoinho – novembro/2018 (org. Lunna Guedes, São Paulo/SP: Scenarium Livros Artesanais, 2018); Feminismos, artes e direitos das humanas (org. Aline Gostinski, Ezilda Melo e Gisela Maria Bester, Florianópolis/SC: Tirant Lo Blanch, 2018); e Elas e as letras (org. Aldirene Máximo e Jullie Veiga, São Paulo/SP: Versejar, 2018). É integrante do grupo Mulherio das Letras desde a sua criação, em 2016. Seus escritos estão compilados na página no Facebook ‘escrevo porque sou rascunho’ (@Niccardealpoesias), além de fazer ‘resenhas afetivas’ de livros de autores(as) amigos(as), na página no Facebook ‘minha lavra do teu livro’ (“porque quando eu leio um livro minha alma precisa dizê-lo… então escrevo o que sinto, porque no meu profundo é onde eu encontro o teu livro”). É autora de Sede de céu – poemas (Guaratinguetá/SP: Penalux, 2019).
***
BRINDE À POESIA
Hoje é dia de brindar à poesia
a poesia – triste sina
escolher a hora certa
morder a isca da palavra bem dita
abocanhar em cheio o vazio da alma
e o aperto dilacerando todo o peito.
Bendita palavra que grita
nessa mudez entorpecida dos dias
– a palavra que escancara os horrores dos dias
que sangra a dor de inteiras noites recortadas
na insônia absurda da voz silenciada
dos desejos engolidos em seco
pela fome mal parada
o brinde é amargo na garganta
nem desce, logo tranca,
não há esperança que se encante
que se garanta,
que resista assim doente
à insana agonia desses dias…
– será que a poesia ao menos salva?
*
DEPOIS
Meus poemas são remendos
(vou tecendo
– um a um –
para cobrir os rasgos da alma)
ela (eu) – a alma –
desde longe,
em tempo e lugar,
vem arranhada dessas coisas estranhas
de sobreviver às vidas.
Não estou querendo
que vazem minhas dores
para além deste tempo e lugar.
Quando for chegado meu tempo (e lugar)
de outra vez ir embora daqui,
precisarei da alma refeita,
embora outra vez costurada.
Que minhas dores
– máximas –
fiquem.
Quero ir sozinha
– ‘inda que cerzida de poesia mínima –.
*
EM ‘EME’
Abri a mão em palma:
a linha seguia em ‘eme’
até virar ao dorso
(nenhum gesto afoito)
– os dedos ficaram perplexos!
Encontrei sulcos atravessados
avisando-me que a vida anda em percalços:
talvez seja aquele passo em falso,
quando o coração escorrega,
cai de cara no asfalto escuro,
arrebentando veias,
sangrando tristezas armazenadas
em sacolas lacradas.
(Esqueci se dizer que houve um rasgo escuso).
Sem agulha
não sei costurar melancolias estrangeiras
– por isso renego o grito,
a palavra maldita –
prefiro engolir silêncios em seco
do que naufragar profundidades sem solução.
– A água na comporta dos olhos jorrou sem medo pelo desvio padrão costumeiro (e nem era mais tempo de verão).
*
POST MORTEM
Ouso encher a boca com a palavra,
ainda que depois de morta a carne
sejam formigas a roubar-me a língua,
e a palavra volte como graveto seco
– um lápis em puro (des)apontamento –
rasgando sulcos distraídos
no misterioso voo da alma.
(deus, por que você nunca me avisou
que o voo sempre esteve implícito nas asas?)
*
VIDA INTRAVENOSA
Enviei uma sonda espa(e)cial por baixo da pele
à procura de vida intraepitelial
nos caminhos molhados das veias vermelhas,
nas estranhas entranhas
entre meus mundos tão fundos,
nas bordas das vísceras,
nas míseras cavidades naturais,
nos contornos das pálpebras caídas,
nos globos oculares depois dos óculos,
nos glóbulos brancos,
nos ósculos, nos óvulos,
nas cavernas palatais,
nas hérnias inguinais,
nas minhas dores viscerais.
A sonda rondou cada milímetro cúbico
dos meus infernos passionais,
descobriu vida desconhecida
fazendo usucapião em minha aorta:
revelada vida intravenosa
em contravenção silenciosa
entre a veia cava superior
e a caverna escura
por onde imagens sobrepostas
trazem da realidade o véu
viscoso véu que me obscurece a compreensão
– às expensas de Platão –
De volta pra casa
quero vida especial
depois da pele
por onde nascerem
– supostas –
as minhas asas.
*
DESCUIDO
Não tenho jeito
sou desatenta
espalho pedaços de mim
por onde vou
depois
quando volto
tropeço em meus restos
quase caio
desequilíbrio vizinho dos pés à cabeça.
Outro dia dei de cara comigo
fazendo estrelas no vidro embaçado
eram cacos eram rastros
poeira despencando dos olhos
lágrimas desavisadas
em estado pós-traumático.
Pulsações cardíacas costuram saudades
nos passos que um dia sonharam asas.
Não tenho jeito
sou desajustada demais
quando se trata de caminhar sobre o amor.
*
NÁUFRAGOS
Ele prometeu voltar depois do outono. Ela fez de conta que acreditou. Ele havia esquecido a chave no carro. Ela arrumou as malas e foi para a praia. Ele percebeu algo estranho durante o banho. Ela atirou-se ao mar sem avisar. Ele encontrou a carta sobre a descarga. Ela descarregou a dor por cima das águas salgadas. Ele deixou a água escorrendo a transbordar na banheira. Ela escorregou por baixo das ondas geladas. Ele chorou dores vivas entre as letras mortas das folhas gastas. Ela perdeu o pé e a água era tão funda. Ele gritou por ela pingando tristezas no envelope rasgado. Ela sangrou a boca na pedra afiada. Ele atirou a carta em pedaços janela afora. Ela respirou o mar inteiro boca adentro. Ele deitou a cabeça zonza no travesseiro. Ela engoliu pesadelos derradeiros no abismo profundo. Ele sonhou delírios azuis na madrugada.
Sobraram restos indigestos naufragados de amor.