Seis poemas de Thássio Ferreira
Thássio Ferreira (1982). Escritor radicado no Rio de Janeiro, publicou os livros de poesia (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016) e Itinerários (Ed. UFPR, 2018). Editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Tem poemas e contos publicados em revistas (virtuais e impressas) e antologias, como a Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Mallarmargens e Germina. Seu conto “Tetris” foi o vencedor do Prêmio Off Flip 2019, e seu livro inédito Cartografias, finalista do Prêmio Sesc 2017. Participou da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) em 2017, a convite da Liga Brasileira de Editoras — LIBRE, e em 2018 e 2019 como realizador e debatedor da Casa Philos.
Abaixo, o poema “línguas” faz parte do livro Itinerários (Ed. UFPR, 2018) e os demais são inéditos.
***
antevéspera
(para Fernanda Nader Garavini)
antevéspera de eleição:
caminho nos jardins
do museu perto à casa
ainda há jardins
ainda há museus
ainda tenho pernas
embora casa já pareça
palavra (ideia) estranha
deslocada
em ruínas
uma criança
atrás de uma samambaia
escondida
(frágil proteção):
há medo
no rosto dela
(há tanto medo
por esses dias)
estamos brincando
(estamos?)
de pique-esconde
por favor
não me denuncia
denunciar: palavra estranha
na boca de uma criança
acho que aprendeu na tv
tantos escândalos:
fulano furtou um boi
enquanto boiadas passam
sorrio, ocultando
meu próprio medo:
conta comigo
não vou te denunciar
*
(sem título)
o primeiro verso
deste poema
em minha cabeça
não seria
“o primeiro verso”
mas sim
“o jogo virou”
antes que
a antipoesia
de onde
escrevo imerso
me cuspisse
à cara
que não há mais
jogo, o que
pressupõe regras
como a física
pressupõe regras
–– não há mais física
como a linguagem
para ser compreendida
minimamente
pressupõe regras
mínimas
–– não há mais linguagem
(sendo minimamente
compreendida)
a existência
(razoável
/
compreensível)
foi abolida
*
desejo
(para o P.T. — Peterson Thiago)
desejo de me convidar
pro teu peito
afundar nos pelos
como areia de aspereza
líquida em meio
a tanta areia
que cega e fere
esses dias
tantos ódios
em longas horas
que já duram meses
e amores doentios
cevados como porcos
como o trator pensa
amar a terra
que revolve
por trazê-la
pra junto de si
(esfarelada)
como a cerca
(farpada) acha
que ama o bem
qualquer que envolve
tentando privá-lo
do mundo
dos outros
como se isso
pudesse chamar
amor:
incalcançar do mundo
de existir
como se apenas
a ira e o fogo
do que um dia
foi amor
do que um dia
se chamou
amor
fosse o que
sobrasse
transbordasse
pelos dias
nos peitos
tão areia
demais de quente
diferente (pra caralho)
da morna areia
líquida
do peito teu:
desejo
mas os teus gestos
quando em pé
desenhando fintas
às minhas entregas
tão diretas
teus gestos em árabe
tuas palavras em libras
em meio aos tratores
e arames farpados
de tantas cercas
desviam minhas mãos
e os dias seguem
com seus amores doentios
e meus desejos reprimidos:
não, não é melhor
assim
mas é assim
que tem sido
*
Poema tirado de uma notícia de portal
Hoje a poesia morreu.
O poema tirado
de uma notícia de jornal
que no caso
tiro dos bytes do portal
de notícias
(nesses tempos de golpes
internet e poesia
como resistência mais
que literatura
— porque é preciso)
é poema oco
anunciando
que Jéssica Monteiro
de vinte e quatro anos
foi detida por tráfico
portando noventa
gramas de maconha
— algo como um
carnaval e meio
de vários usuários
não negros
nem pobres —
foi escoltada ao hospital
deu à luz o Henrico
foi escoltada de volta
(— a poesia morre sempre
um pouco quando
precisamos usar
palavras como
es colta da
num poema —)
e se encontra
com seu bebê
em uma cela
suja (como todas)
de dois metros quadrados
a pedido de uma promotora
grávida
(!)
*
o que se é sem que se queira
eu sou o patriarcado
mesmo desejando
— desejo: alavanca
e porta na cara
(camisa-de-força)
da existência —
não sê-lo
como aquela que nasceu
cromossomicamente macho
mas deseja sê-la
como a primeira andorinha
a cruzar o atlântico em
rota migratória rumo a
tornar-se(r) quem
é
como a primeira rã
(anfíbia) hermafrodita
alvo do soslaio do charco
ou a lagarta que inventou a coragem
de se tecer borboleta
monarca
até que tantas outras
a seguissem hasta cubrir
elcielo de elmexico
mas eu não
não eu
em mim, lagarta chã
sem verão
o desejo é ladainha
diária
dança, fome, pele que respira
processos mitocondriais
incessantes; e tenaz exercício
mas não alcança:
transformação
da luz em folha
da seiva em flor
do que é no
algo diferente
que já não é mais
sem deixar de ser
eu sou o patriarcado
— sei, sinto, choro e luto —
até que não o sejamos mais
(nós
tod@s
transformad@s)
*
línguas
(in Itinerários, Ed. UFPR 2018)
eu você
os homens brancos das academias de belas letras
de ciências
dos institutos tecnológicos
e cadeiras de antropologia
linguística e etimologia
perguntamos
ao caboclo à maninha
zezinhotxaihunikuin juruna
(todos que misturo sem confundir
mas que não qualifico porque
não devo não posso
não me cabe)
se uacari, que denomina
um certo macaco de cara vermelha
significa “algo”
e o primo entreabre os lábios
olhando-me comprido
com a cara inclinada:
significa este macaco de cara vermelha, ora
por acaso macaco significa algo
que não macaco?
chimpanzé orangotango mico sagui
que importa a origem dos nomes
quando servem a nomear
as coisas que há?
mania nossa, homens exóticos ao puro chão
de achar que sob o mesmo céu
e mesmas sístoles diástoles sístoles
que pulsam em todo coração
os irmãos que chamam uacari
aos macacos de cara vermelha
querem dizer sempre em cada coisa
(em cada grão)
algo mais do que macaco do que rio do que feijão
quando dão nomes às coisas
como se japurá não pudesse
ser tijolo chinelo óculos
kiwik músico tõ’õramū
(lê-se e fala-se tonramã
isso eu sei e é isso mesmo)
como se os nomes que os outros dão
não pudessem como os nossos
ser apenas os nomes mesmo
uacari macaco porto
arigó banzeiro urami
dia santo
colibri
perdão