Seis poemas de Victória Monteiro
Victória Monteiro (1996) é graduanda em Letras pela Universidade São Paulo e publicou o livro De que se veste a nudez (2017), pela Editora Patuá.
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1.
a bem dizer tenho me prostituído,
limpado a casa, estado ausente.
tenho me prostituído como se pudesse
e meus amantes, meus comensais
vêm até aqui, uns pela civilização
que engatinha em mim, espetáculo
mínimo do recomeço, outros
pelo esmaecido e gasto,
vêm pelo fim; na mulher anterior
o princípio era grande demais.
uns porque acreditam em deus,
outros porque não acreditam.
vêm porque sabem a cama pronta
ao rito sempiterno da passagem,
coisas pequenas acontecidas graves,
o corpo prestes a se esquecer.
vêm para não saber
se experimentam a queda
ou se é verdade que apenas chove.
vêm para olhar o touro nos olhos
e despossuírem-se, o gesto perdido.
vêm para não conhecer.
só não vêm os que já estão nus.
estes não poderiam, têm a casa
limpa e aberta também –
nus a meu despeito.
e partem todos os meus amantes,
salvo aqueles que não virão.
alguns odeiam o amor pela origem.
2.
tenho duas semanas para a ginástica
de acostumar meu corpo à tua ideia.
enquanto isso é certo: preparas o alimento
com as mãos firmes amaciando a matéria.
talvez me ofereças uma parte por convicção
ou rebeldia. tanto faz. conheço poucas coisas,
mas conheço tuas mãos.
se hoje o dia é a sério
é porque as janelas estão abertas.
apenas acordada, falo àquilo que me contradiz.
meu gato me olha sem saber que aos sete anos
descobri o prazer.
depois já não contam os números.
é dia de confissões. é domingo. carrego pela casa
todo o meu dever humano.
caminho quase reconstituída entre os cômodos.
é assim que a morte desinfeta os espelhos por aqui
e que eu também tempero cadáveres.
3.
contanto que amanheça neste lugar
em que me demoro, em que te demoras,
e nos vejamos apenas, e nos saudemos
com a lembrança de que algo aconteceu
pois ali mesmo ergueu-se o homem
e toda a humanidade invocamos juntas.
mas veja: é de manhã, o salto é outro.
não nos é dado morrer duas vezes
do mesmo mal.
contanto que amanhã possa vir
em sua continuação dissimulada,
seu espaço falso onde somos livres,
terei uma língua, um modo de caminhar.
você me reconhecerá, dirá
é a mesma.
4.
aqui onde não floresce uma só pétala
de tempo que se pudesse arrancar,
cheirar, colocar num porta retrato,
aqui onde as horas não vigiam
o corpo já não é uma promessa.
chamamos casa este lugar onde
os quadros não servem a decoração
ou a memória. onde você entra
e pisa o chão num gesto porque
o gesto ainda figura possível.
onde pergunto: meus olhos estarão
por acaso prontos para a justeza
da expressão? aqui onde a questão
apesar do chão não me escapa.
talvez seja este apenas o lugar
onde nomeamos o atraso do pássaro
e a imediatez próxima da janela,
onde me cabe ser fatal e primeira
para que você já não estranhe a morte.
onde preparo o corpo, a hospitalidade
e só é possível ser jovem.
este modo novo de experimentar
as despedidas é a casa.
5.
a tirania
de não permanecermos intactos e no entanto
ser impossível dizer de que lado queimamos.
nenhum milagre é inequívoco, o isqueiro
não sossega na parte mínima do bolso
onde não há risco de perder-se
mas retorna à mesa para servir a boca
de um estranho. da mesma forma
trago à superfície tua aparição,
recolho esta memória essencial,
já não sou uma máquina de fumaça
e sangue. e cobro do calor sua injustiça.
6.
conheço desta vez os lugares do corpo
onde o tempo deixará as tais marcas.
há de deixar. peço que deixe.
o tempo, as mãos arrancando
deliciosamente minha dúvida,
estranha flor sem dono.
a este homem ofereço a ruga
em pé entre as duas sobrancelhas.
àquele, o ventre vencido pelo álcool,
um joelho que não funciona mais.
àquele outro, a pinta num dos dedos
que há de envelhecer comigo.
a todos meus olhos cansados
compadecidos de terem vivido
e uma pétala. a todos este olhar
distante de saudade que trarei,
que trago nesta manhã
de vinte e três anos.
e na saudade algum tipo
inabitual de certeza.
prefiro não pensar.
agora descanso,
penso que descanso,
escrevo poemas de amor.