Seis Poemas e Quatro Cenas de Murilo Figueiredo
Murilo Figueiredo tem 24 anos, estudou Letras em São Paulo como graduando e Teoria de Paz em Relações Internacionais no Japão com pós-graduando. Traduz literatura japonesa no tempo vago – gosta dos romances misteriosos—e reside em Tóquio já faz quase 4 anos. É amigo de cabeceira da Hilda, da Ana Cristina, da Maria Teresa Horta, da Orides e mais algumas outras da alcateia – tomam vinho juntos quando dá. O Mu acha filosofia o máximo e tem um book club com a antiga orientadora do mestrado onde eles leem feminismo intersseccional e outro tópicos relacionados a violência epistêmica e decolonização também. Vai ser doutor em filosofia quando a vida deixar. O Mu escreveu um romance que foi publicado pela Editora Patuá em 2018, “A Varanda Onde Penduramos Nossas Bexigas” onde a intergeracionalidade do substantivo mãe ganhou formas poéticas e textuais.
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Poems from after the storm.
A seguir, fragmentos recuperados e reconstruídos de um ano marcado por ausência, desejo e saudade.
Inquietações
comunicado
a saber que estamos em diferença
ajo constantemente para não deixar
as incongruências viverem veladas
suposição
quando imagino a grande ponte
tenho noção de que ela certamente não existe
e de mim depende em escolha para ser vista
reflexão
na música dos teus passos
na lábia da tua cabeça
na testemunha da tua língua
demolição
num dia qualquer uma luz vem
e eu me emancipo do meu medo de fogo
é doce, acachapante e cruel
reanimação
quando em meio ao torpor
minha boca ganha o poder de mais nada dizer
sintonização
saímos e fechamos toda a casa
janelas, portas, nunca mais voltamos
anistiamos três décadas de memória
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logos
I.
no começo,
abrimos todas as nossas páginas
ou não foi, meu amor?
compartilhamos teu chuveiro
a barreira da pele era tua entrada
tu me desfazias na poesia
e eu queria estilhaçar todos os relógios do mundo
pois estávamos em êxtase —
ia espalhando o teu nome
pelas letras da minha língua
tocava teu som na cadência da minha fala
teu nome respingando nos cantos da boca
cujos lábios eu lambia
deitado na sua cama de manhã
II.
eu te amo
o que significa
uma aparente disputa metafísica
pois sou testemunha da tua língua
rasgo o verbo- ali dentro te amo -reescrevo a linha
em minha pele, sei-te vivo
e na minha voz teu corpo resistia
ou seria problema epistêmico
resultado de realidade distorcida –
será que sei…
será que sabia?
III.
você parecia, então, saber
acontece que nesses jogos epistemológicos
de supor, prever e propor
de agir sob pena de perjúrio
por pura rebeldia te provocar
eu só tinha sede de saber de ti
nunca tive medo das tuas verdades
e poria o nome do meu corpo sob a fogueira
para te provar que estavas vivo em mim
ou não pus?
purificaria em chamas nossos termos retalhados
para te achar, despiria todas as minhas palavras
descosturaria toda a sintaxe da minha poesia
sem sucesso.
ao fim da interrogação ígnea
todas as palavras que criamos somem
as conclusões secam o rio
o mesmo que descobrirás entre minhas pernas
o mesmo que me resgatou da verdade e saciou minha sede
nenhuma flor do jardim sobrevive.
***
Resquícios
para esquecer-me de tua voz
encontro a música perfeita para não te mostrar;
já que não posso,
duvido da beleza da música
nunca de ti
e se acordo ainda te procurando
embaixo do futon, a manhã inteira
— é que costumava te achar;
costumava te achar, juro
pelo menos até meio dia
aquela língua que falávamos muda
escurecida de hiatos
notivagos vagalumes
vão perdendo seus gostos,
essências e mais alguns sentidos
no breu da estiagem
***
No silêncio
Meus pés seguiram para o mar
Minhas palmas viradas para o céu
Foi ali
Estendido na demora, respiro a respiro
Onde terminava o eco da tua voz
Que optei pela entrega
Desconheço-me de ti;
destituído da nossa língua,
sob as cinzas
do nosso dicionário.
Depois de carregá-lo desértico,
Entrego o teu nome para o oceano
Escrevo tuas letras obtusas na areia
E as ondas que lhe devolvam o resto
***
Quatro cenas de um lar.
De manhã, depois do sexo, conto para ele que nunca durmo na cama de ninguém; explico que não confio em homens com suas câmeras. E deixo a entender que algo me fez confiar nele, mesmo que aquela fosse a primeira vez que nós havíamos nos encontrado na vida; vagamente, passávamos 7 horas conversando na noite anterior antes que eu me desse conta de que o último trem eu já tinha perdido. Já no trem, de volta para casa, me dei conta de que eu mesmo havia me enfeitiçado; os olhos azuis dele desviavam, mas eu fechava os meus e imaginava que eles continuavam a me olhar.
—
Era já tarde quando aconteceu; estávamos juntos fisicamente, eu sentado no colo dele enquanto conversávamos na poltrona. Não me recordo como começou ou como foi que o intervalo entre nossas vozes permitiu a falta de atenção, mas por alguns minutos adormeci suave sob o ombro dele e estava eu ali quietinho ressonando até que minha consciência retornou, um pouco surpreso pelo fato da guarda ter baixado tanto.
—
Numa noite de doces regada com atrativos psicodélicos, ela me levou da sala para a cozinha pela mão e fechou meus olhos; algo me dizia que seria clichê demais esperar por alguma coisa física. Ela coloca uma colher de brigadeiro na minha boca, me manda mastigar e engolir, sem abrir os olhos; me beija em seguida, se demora em mim e pergunta depois se gostei. E gostava da ideia de nossas bocas terem se tocado. E também do gosto, eu gostava do gosto que ficou; da surpresa, do risco, do batom.
—
Eu achava a coisa mais comum que nós três já tivéssemos nos beijado em algum momento ou dormido juntinhos na mesma cama inúmeras vezes. E andávamos para cima e para baixo sempre em bando. Gostava que o toque entre nossas peles não se tornava questão de poder ou de luxúria, mas parte da condução do nosso desejo. Compartilhávamos os namorados, as namoradas, beijos, escovas de dente, corações partidos e as passagens de ônibus pagas com dinheiro de outras pessoas. Uma parte de mim estava segura, guardada atrás dos olhos verdes dela ou dentro do sutiã da outra. O resto das partes, eu me pego fingindo que também estavam.
***
A teus pés
Como dizia eu
Iria até onde meu corpo me deixasse ir se assim
E só assim
Acompanhasse os teus passos
Inventaria a carne para te querer
Daria pele e voz ao sonho
Com ânsia por abandonar os poemas
Ainda que só por breves instantes ter só a ti
Salgado e coberto de areia
Numa sina desértica
Observo a fome do mar a engolir tuas pegadas
Na bonança matutina
Onda a onda
Da tua memória meu corpo se despe
***
Já o resto de todas as cintilâncias
Nada me oferecem
Poucas, não respondem as lacunas
Não te trazem de volta
Nem a fantasia te reconstrói
Nem mesmo a poesia se aproxima do que foi ti
Tudo é só caraminhola redonda
Espirais vazios de sentido
Monólogo delirante
Teu corpo sumiu do meu vocabulário
É apenas cimento armado
Monumento
Calado
E para sempre
Tu e tua cara limpa
Nas páginas do meu caderno
Nossos palimpsestos chamuscados com cheiro de museu
Aquela língua
De astucia afiada
A mesma que fez meu sangue borbulhar
Tu e ela presos na tua boca
Teus lábios jamais voltarão a se mexer
Teu toque nunca mais vai destruir meus sonhos
Estátua, tu agora tens tudo
Todos os relógios do mundo no teu estômago