Seis poemas e um conto de Rani Ghazzaoui
Nascida em São Paulo e naturalizada australiana, Rani Ghazzaoui é escritora, comunicadora, atriz e poeta. Sua obra é escrita em português e inglês, e trata de temas variados que dizem respeito à vulnerabilidade humana, ao seu entendimento da complexidade de sua própria humanidade. Escreve com frequência sobre amor, dor, feminismo, relacionamentos, sociedade e autoanálise.
Formada em Comunicação Social pela faculdade Casper Líbero, em São Paulo, trabalha há dezesseis anos na área de comunicação tendo passado por setores que variam de agências de publicidade à televisão; de design e inovação à inteligência artificial.
Ainda sem obra publicada, está escrevendo seu primeiro livro, ainda sem data de lançamento, pela editora Lyra Das Artes. Escreve poesia diariamente em seu Instagram @ranighazzaoui — e periodicamente contos em seu blog, que existe desde 1999.
***
Vivas
Nós mulheres,
Nós vivemos e morremos
Em um dia.
Nós explodimos
E nós semeamos
Todo dia.
Mas eles nos querem
Sobretudo
Atraentes
Com a voz mansa.
Eles nos exigem
Ser pequenas
Ser coesas
E quebradas.
Eles nos querem mortas,
Mas nós estamos vivas.
*
Escrevo Porque Sei
Fui escrevendo como quem desaba, como quem desagua, como quem desmaia, vomita, expele, explica. Fui escrevendo nossa história por cadernos, rodapés, cartolinas, cartões, capas de revista. Fui escrevendo rápido, sem compasso, sem métrica, sem rima, sem ritmo, sem jeito, até. Fui escrevendo desenfreada, maluca, gozando, subindo, descendo, correndo, gritando. Fui escrevendo com medo, com desejo, com vontade, com paúra, com receio, com amor, com emoção. Fui escrevendo por anos, e décadas, e séculos, e milênios, e muito mais. Fui escrevendo pra sempre, e sempre, e sempre, e sempre mais. Fui escrevendo tudo, cada detalhe, cada anseio, cada novidade, cada rabisco que fazia de você, você e da gente, a gente. Fui escrevendo uma história de amor que não sabia limites, não tinha rédeas, não se acostumava com o morno, não se continha com a média. Fui escrevendo desesperada, tremendo, balançando no meio da rua, com sangue na lapela e suor na testa. Fui escrevendo desconfortável, trêmula e morta, andando na calçada, correndo pro meio da rua. Fui escrevendo escorrendo pra debaixo da terra, escorregadia com as lesmas, ensopada de vida, póstuma. Fui escrevendo do além, fui escrevendo com anjos e diabos, com espíritos e fantasmas. Fui escrevendo porque é o que sei fazer. Escrever é só o que eu sei fazer.
*
Bolero
A música vinha do vizinho
Ecoava pelo prédio todo
Acordou filho, esposa, cachorro
Era um som mansinho
Que crescia em catarse
Expandia
A vila toda
— Então —
Resolveu por dançar
Esbarravam em mesas e sofás
Na prisão domiciliar
Num ano tão cheio de dor
A música do vizinho era amor
*
Espectro
Todas as cores do mundo se escondem nos teus olhos
De manhã, eles têm cor de amor
Na hora do café, de vontade
À hora de almoçar, têm cor de desejo
Pela tarde, de verdade
Mais à noite, têm cor de sorte
E quando já completamente escuro,
Seus olhos têm cor de morte.
E os meus assistem quietos, passivos, deslumbrados.
Em cada olhar que me jogas,
Os meus, pelos teus,
Continuam apaixonados.
*
Ferida
Você mexeu numa parte de mim
Que vive escondida
Por ter medo do sol
Medo do escuro
Medo do ar
Medo de tudo
Você foi lá e cravou seu dedo bem fundo
E estourou a bolha
Que eu passei anos
Nutrindo, monitorando
Por ter medo de ficar exposta
Medo do vento
Medo de tudo
Que lembra você
*
Sinto Muito
Somos loucos,
Somos cegos,
Somos surdos,
Estamos todos mortos.
Vocês não vêem que a criança morrendo na escada
– ensanguentada, molhada, estuprada –
a criança é você, sou eu, somos nós?
Estamos doentes,
Estamos malucos,
Estamos todos moribundos,
Estamos perdidos e aos montes.
Com fome e frio e medo do escuro.
Mas tudo é escuro,
Só existe a escuridão.
A um palmo do nosso próprio umbigo nada se vê.
Vocês não sentem a dor da mãe
no chão da clínica ilegal de aborto?
E a dor da mão na nuca do negro,
estraçalhado todo dia pelo seu eterno crime de ser?
Vivo ou morto, morto ou vivo.
Sempre morto.
A mãe não é você.
O negro não é seu.
O refugiado não existe.
Nós somos a negação da vida.
E negar a vida é morrer.
Vocês não sentem?
Eu sinto
Eu sinto
Eu sinto
Eu sinto
Eu sinto
Muito.
*
Meu Bill (E Seu Kill)
Eu não sei escrever com a cabeça, eu só sei escrever com as vísceras. E, pra isso, elas têm que estar em carne viva, sangrando.
Eu não sei escrever histórias em que os mocinhos e mocinhas têm hora pra tudo; começo, meio e fim. Minhas histórias também não têm vilões, porque eu custo a acreditar que a maldade escolhe um lugar apenas pra se aconchegar certeira. Maldade, pra mim, é a absoluta certeza de que se é bom.
Eu não sei me explicar quando tenho vontade. E as minhas vontades se empilham no chão do meu quarto escuro. Bagunça sentimental é minha decoração preferida e a minha coleção de center pieces dura já uma vida inteira.
Ele olhou pra mim e eu sabia que eu estava ferrada. Aqueles olhos, o formato, a cor, a intensidade. Parecia que ele estava enxergando dentro de mim e eu fiquei envergonhada. Foram dias e dias de vontade acumulada, de desejo que não tem pra onde ir. Imaginava as mãos dele, os braços, os abraços, os pelos, o cabelo, as pernas contorcidas. Imagina a desgraça. Mas a culpa não era dele, e eu sabia. A culpa também não era minha porque eu precisava tanto daquela coisa que, por mais que eu tentasse mudar a dinâmica, vinha sempre dos outros e nunca de mim. Eu precisava dele porque ele representava o que eu sabia fazer de melhor na vida.
Desejar é uma arte e ele sabia, eu acho. Ele sentia. Sentia a tremedeira nas pernas que eu também sentia toda vez que esbarrava com ele no corredor. Eletricidade. A gente corria. Besteira adolescente, eu pensava. Caralho, como era bom me sentir quinze de novo, mesmo que por duas horas num mundo de mentira. Quando eu era mais nova, não sabia escrever sem palavrão. Profanidades, pra minha eu adolescente, eram como cerejas no bolo: alegravam os olhos, me faziam mais alta. Ele me fez xingar de novo. Fazia tanto tempo que eu só vivia mantendo a compostura.
Sonhei todos os sonhos do mundo com ele e acordei em todas as madrugadas seguintes sedenta e atordoada. Que calor era aquele dentro de mim?
Eu não sei escrever com a cabeça, eu só sei escrever com as vísceras. E, pra isso, elas têm que estar em carne viva, sangrando.
Ele morreu ali, naquele sofá. Fiquei disléxica e matei tudo o que podíamos ter sido com as minhas palavras de quem não demora. Ele queria mais, eu queria mais. Chegamos na hora errada. Nunca entendi ao certo, mas prolixidade não garante amor e o relógio da vida parece nunca emparelhar as horas com os relógios de quem queremos permanência.
E eu sangrei. Muito, por meses. Uma hemorragia de coisas que precisavam ser ditas mas nunca foram. Uma cena do Tarantino num dia ruim.
Eu abri uma fresta da janela pra ele me enxergar e fiquei esperando ele chutar a porta. Ele não chutou. Eu não abri. Estamos onde estávamos, nada mudou.
Eu não sei como aconteceu, mas ele chegou e ele existiu. Na minha eterna necessidade de me sentir completa, ele me mostrou que dois pedaços não fazem um inteiro e que a nossa verdade pode sempre ser uma mentira muito bem contada.
Voltei a viver a vida. Minha porta continua fechada, minha fresta eternamente aberta.