“Será que escrevo uma carta?” por Sílvia Barros
A coluna travessia de hoje fala do doce sabor da infância, autocuidado e resiliência, fala também sobre brasas de afeto e incêndios de ira. Que nossa caminhada até aqui não seja em vão, que haja sempre uma carta de nós mesmos a nossa espera. Boa leitura!
TRAVESSIA é coluna reservada à professora doutora do Colégio Pedro II e poeta de mão cheia, Sílvia Barros. A periodicidade é quinzenal, preferencialmente às terças-feiras, mas isso não é regra, só os 15 dias. O objetivo do espaço é jogar luz sobre as intercessões presentes na relação entre conhecimento acadêmico e saber ancestral. A coluna travessia de hoje fala do doce sabor da infância, autocuidado e resiliência, fala também sobre brasas de afeto e incêndios de ira. Que nossa caminhada até aqui não seja em vão, há sempre uma carta de nós mesmos a nossa espera. Boa leitura!
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No dia doze de outubro, muitas mulheres escrevem cartas para elas mesmas do passado, dando conselhos, dando carinho, oferecendo o acolhimento que não receberam. Vejo muitas mulheres negras praticando esse movimento de revisão e cura que, ao mesmo tempo, ficcionaliza e ressignifica nossas experiências. No dia doze, as redes sociais se transformam em um álbum de família com as imagens das pessoas que conhecemos numa versão antiga que nos enche de ternura. Sabemos que aquelas crianças das fotos merecem uma mensagem de carinho, beijos e afagos.
Ensaiei algumas cartas, escolhi algumas fotos, mas não alimentei minhas redes em doze de outubro, acho que preciso de mais alguns anos para completar essa travessia. Como não consegui decidir para que versão minha escreveria uma carta e o que eu colocaria nela, resolvi dedicar um poema para minha versão mais sonhadora: a menina escritora.
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Isso não é uma carta
Passei anos anotando meus planos
em cadernos
Em páginas e páginas
Que se amontoavam.
Conforme eu crescia,
E enquanto eu escrevia,
Meu corpo mudava.
Registrava, na pele e na página,
Ideias distorcidas
Recortava e colava
Imagens de revista.
Eu via as meninas sentadas
Lançando cabelos longos
Rabos de cavalo brilhosos
As pontas tocando delicadamente
O tampo da mesa de trás.
Diante dos meus olhos
Palavras de ordem-
Imagens de ordem-
Como as que via na televisão
Saltavam nas paginas
Dos diários.
Se eu fosse escrever uma carta,
No dia doze de outubro
Para minha versão menina
Eu diria:
Não se esconda nesse papel
Guarde sua raiva
Como uma brasa
Cujo calor você controla,
Abafa
e depois
incendeia
Quando a hora é chegada.
Se eu fosse escrever essa carta
Eu diria que o rancor não
Te torna à prova de balas
Eu diria rasgue
Risque
As palavras uma por uma
Taque fogo
Aprenda com o fogo
E se alastre
Seja grande sim
Seja enorme
Ninguém tem o direito de
Te cortar em pedaços.
LUCIA FAJARDO LOPES
Meus deuses, qta leitura boa e nutritiva!.. Gratidão!.🙌🌻