Sete poemas de Adriane Garcia
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018) e Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), sendo que deste último fazem parte todos os poemas a seguir.
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L V
O amor por princípio
A ordem por base
O progresso por fim
Ordem por base
Progresso por fim
Ordem e progresso
O amor no precipício.
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LVI
Porque não usufruímos ciência
E comemos sem iodo
Domine, miserere nostri
Porque tantos não sabemos ler
E poucos dominam tudo
Domine, miserere nostri
Porque nos casamos entre primos
E geramos filhos fracos
Domine, miserere nostri
Porque fazemos o beija-mão
Do estrangeiro que passa
Domine, miserere nostri
Porque abrimos nossas casas
Aos que nos vêm construir
Domine, miserere nostri
Porque esta noite tivemos
Um pesadelo coletivo
Domine, miserere nostri
Porque construíram
Uma grande avenida sanitária
Domine, miserere nostri
Porque somos a velharia
No Vale do Rio das Velhas
Domine, miserere nostri.
*
XLIV
Essas pessoas sabem pressentir as chuvas
Cheirar dezembros sob chapéus de palha
Sair mais cedo da cama para
Plantar milho e feijão
Acordar os filhos, pegar os ferros
Ir pro roçado, íntimas do tempo
Abrir com enxada, nutrir com a mão
Fechar com os pés as pequenas covas
Essas pessoas de mãos calosas
Conhecem o fruto e a sua passagem
O rito das safrinhas, da terra o parto
Conhecem as panelas
Cheias de Deus.
*
XLIII
Intacta, a fera equina não se dobra
Negra, de pé
O músculo e a ossatura soberana
Peito/ Majestade/ Dorso e/ Crina
Três homens são precisos, enlaçam-no
O bicho ofegante, que salta e relincha
Em três direções/ A corda tenta
Retesar o que é essência
O universo/ As estrelas
E o cavalo luta/ O cavalo dispensa
A contagem das horas
Enquanto os homens se cansam
Dias, meses, o cavalo perdura
Mas já obedece, perde em selvageria
A trotada em círculo que a corda dirige
A mão de Midas
Que tudo destrói.
*
XXXVII
Nas mãos velhas de Dona Miguelina
O paninho, a agulha e a fé
Ambrósio de pé
Que que eu cozo?
Olho gordo
Menino no colo de Gilda
Sem dormir, a mãe exaurida
Pezinhos medidos, Dona Miguelina:
Que que eu corto?
Espinhela caída
Zezinho, na porta
Não cresce
Nem come a comida do prato
Que que eu benzo?
Menino aguado
À noite Miguelina não benze
À noite cuida das ervas
Depois dorme
Miguelina espera
Outra vez
Ser instrumento
Do Altíssimo.
*
LXV
Sem mãos pro trabalho, sem força nas pernas
O velho Tião, no meio da mata
Como perdeu tudo
Se não tinha nada?
Choupana de barro, batido na vara
Caindo aos pedaços, casa de cupim
Comendo farinha, molhada na água
Como perdeu tudo
Se não tinha nada?
Lá vai Tião rumo a Deus sabe quando
Lá vai sem sapatos, que Tião nunca tem
Trouxa de pano, camisa e duas calças
A roupa do corpo e a gamela quebrada
Como perdeu tudo
Se não tinha nada?
O sol escaldante, cavalo nem boi
As terras de Tião eram do coronel?
Que ainda debocha e soa a bravata:
Como perdeu tudo
Se não tinha nada?
*
XLII
No silêncio absoluto
Deste cheiro
Descasco o alho
Toma minhas mãos e segue
Para dar sabor ao prato
Que servirei para o meu mundo:
Meu marido, minhas filhas
Minhas mãos se consomem
Do exercício de preparo
Cascas finas grudam nos dedos
E na faca
Corto os dentes
Ponho-os no pilão
Soco com sal
O amor temperaria o mundo
Quero é paz.