Sete poemas de Ana Martins Marques
Ana Martins Marques nasceu em Belo Horizonte em 1977. É formada em letras e doutora em literatura comparada pela UFMG. Publicou os livros de poemas A vida submarina (Scriptum, 2009), Da arte das armadilhas (Companhia das Letras, 2011), O livro das semelhanças (Companhia das Letras, 2015), Duas janelas (com Marcos Siscar, Luna Parque, 2016), Como se fosse a casa (com Eduardo Jorge, Relicário Edições, 2017) e O livro dos jardins (Quelônio, 2019). Uma antologia de seus poemas acaba de sair em Portugal, pela editora Douda Correria, com o título Linha de rebentação.
“Minas” e “Poema de verão” integram O livro das semelhanças (Companhia das Letras, 2015); “O que nos aconteceu…” integra o livro Duas janelas, escrito em dupla com Marcos Siscar (Luna Parque, 2016); “Jardim francês”, “Jardim inglês” e “Jardim japonês” integram O livro dos jardins (Quelônio, 2019); “Língua” foi publicado na Revista Pessoa em 2018.
***
Minas
Se eu encostasse
meu ouvido
no seu peito
ouviria o tumulto
do mar
o alarido estridente
dos banhistas
cegos de sol
o baque
das ondas
quando despencam
na praia
Vem
escuta
no meu peito
o silêncio
elementar
dos metais
*
Poema de verão
Você está sob a luz
de certos poemas cheios de sol
sua mão faz sombra sobre a página
encobrindo algumas palavras
a palavra menina agora está à sombra
a palavra retângulo
a palavra brinquedo
as outras palavras ficam pairando
no poema como partículas de poeira
brilhando na luz
você gostaria de escrever poemas assim
em que se encontrasse de repente
o esqueleto alvo de um animal pequeno
ou em que um jovem casal dormisse
dentro de uma picape vermelha
ou ao menos em que houvesse uma raposa
vinho de maçã, cadeiras desdobráveis
e onde as cervejas fossem postas para esfriar
dentro de um rio
você gostaria de escrever um poema
em que acontecessem tantas coisas
e as palavras vibrassem um pouco
num acordo tácito
com as coisas vivas
em vez disso você escreve este
*
O que nos aconteceu
o que não nos aconteceu
têm o mesmo peso no poema
Ontem visitamos
nosso amigo doente
era comovente ver seu esforço
para parecer melhor do que estava
Andamos um pouco pela praia
a certa altura me dei conta
de que nunca perguntei onde ele nasceu
Encontramos uma água-viva na areia
alguém disse que ser assim
indistinguível como a areia da areia
o mar do mar
deve ser algo próximo da felicidade
Uma dessas coisas não aconteceu
*
Jardim francês
Esculpir-me
como a uma
cerca viva
erigir-me
severa e simétrica
construir-me em volta
de um palácio (vazio)
ou apenas costurar-me
em torno
do touro
*
Jardim inglês
Aprendi que tudo o que vive
tudo o que cresce
vive e cresce
contra o cálculo
desde então
alamedas amplas me dividem
não exatamente
ao meio
*
Jardim japonês
Arqueio-me como uma ponte de madeira
sobre um lago aceso por carpas vermelhas
sou dura e seca e quase sem enfeites
como um jardim de areia
(mas há pedras que florem
como flores)
silenciosa como um papel de arroz
em que ainda
nada
foi escrito
*
Língua
1
no princípio
toda língua é estrangeira
acerca-se do seu corpo como de uma cidade
até tomá-lo
fazê-lo chamar-se a si mesmo pelos nomes
que lhe dá
pé perna barriga dentes
fazer a língua chamar-se língua
chamar-se a si mesma pelo nome dela
língua
acerca-se até domá-la
para ensinar-lhe uma coreografia sua
que ela, língua, por sua vez
ensina ao pensamento
cantando
estar na língua como numa
casa louca
que obriga ao abrigar
ela pensa o seu sexo
ela pensa o seu coração
abrindo-o
ela é música
e combate
ela fala na sua boca
com a boca dos mortos
ela é a eletricidade
dos cadáveres
daqueles cuja boca ela encheu
antes da terra
ela cria raízes no seu corpo
dela não é possível se livrar
você é livro
dela
e se aprende outra
é contra ela
contra sua memória
excessiva
e em viagem
com ela
que te cobra e cobre
como um mar
2
Ou é um dueto
uma dança
muito antiga
dela você também se acerca
toma as palavras emprestadas
e empresta-lhes também
sua energia
sua coragem ou doçura
e talvez seja mesmo possível
descartá-la
dissolver-se num mar que não o seu (Cf. Jorge de Sena, “Noções de linguística”)
livrar-se dela
trocá-la por outra
mais nova ou versátil
(meus únicos heróis
são os tradutores)
ou pouco importa a língua
mas o dizer as coisas
que ao serem ditas
extinguem-se
mas com que fulgor
(escrever poemas:
não se contentar com as línguas que se sabe
nem mesmo com as línguas que há)
as línguas são meios
de viagem, são meios
de transporte as palavras:
carrega consigo o camelo o arranha-céu
a baleia
não só a baleia
todas as baleias
não só o amor
todo o amor
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(Fotografia de Rodrigo Valente)