Sete poemas de Blenda Santos
Blenda Santos é poeta, nascida e criada no Santos Dumont, bairro periférico de Aracaju, capital de Sergipe. Iniciou o seu trabalho com a literatura em 2016 e desde então, circula por diversos espaços, utilizando a união da poesia falada e da performance corporal como ferramenta de reconstrução de narrativas do povo preto e periférico. Em 2018, venceu o Slam Sergipe e foi a primeira representante do estado no Campeonato Brasileiro de Poesia Falada, o Slam BR.
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Crio tecnologias com a boca
uma mulher carregando no ventre um caixão de uma tonelada levantou voo nesta madrugada
um menino correndo na rua atrás de uma bola também desafiou as leis da física
ela que não aprendeu a ler, me ensinou a escrever poesia
e se eu esquecer, eu nem sei mais o que fazer
eles não queriam que eu viesse, mãe
e eu sou poeta
crio tecnologias com a boca, pois preciso lembrar de cada animal em extinção nesse país, em que todo mundo sonha em ter um pai
nós não somos iguais e graças a deus
um movimento contínuo para queimada de sutiãs nunca me disse tantas coisas assim
desde então, eu era mordaça com folhas de flandres
de onde eu vim, águas passadas movem moinhos
não esqueço das que vieram e abriram caminhos
ketu, nagô, gege, bantu
não quero sua cor, sua cultura, sua lida
não quero seu espaço, sua crença, sua língua
nós não somos iguais e graças a deus
os reconheço pelo cheiro de quem desde o primeiro banho, nunca mais parou de feder
quem tem punho cerrado que erga
eu escrevo para todas aquelas que virão depois de mim
*
Antecedentes
não me convence de coisa alguma
quem diz que um corpo precisa passar por entre facas
para assim aprender sobre algo
não existe esse que saia ileso de campos de concentração
guerras não foram feitas para ensinar nada
sangues não podem ser tintas sobre telas
balas mesmo que de borracha deixam cicatrizes
o que antecede é a única fórmula mutável
mas ninguém está interessado nas lágrimas
*
Isidório
Isidório tem dentes grandes e olhos do mesmo tamanho
aprendeu a sorrir com os dois porque não gosta de perder tempo
é menino e homem para não cometer desperdícios
faz questão de manter o seu avô vivo e por isso, todas as vezes não mente
Isidório dorme de olhos abertos para não roubarem seus sonhos
raciocínio rápido e lógico, filosofia e matemática
daqueles que reprovam em cada matéria e ainda assim conseguem levantar uma casa com as próprias mãos
Isidório lê livros sem se atentar ao nome do autor e sua origem
se contenta com fios de roupas amarrados em seu copo para assim guardar lembranças
entrega coisas e mesmo que não te devolvam, ele repete o ato
pois antes de entender, tem preferência pelo sentido
Isidório escreve sempre com letras bonitas e enfileiradas, sem caderno de caligrafias ou réguas
se na mercearia falta uma moeda, logo volta para nada mais faltar
não repete as mesmas palavras, para ele só uma vez basta
Isidório sempre esquece de tirar o ferro que liga a articulação de um dos seus ombros
por isso só se deita de um lado da cama
velocidade e precaução, tudo ao mesmo tempo
50 por cento de uma coisa e 50 por cento de outra
o equilíbrio entre os motivos pelo qual acumula diversas histórias marcadas no corpo
Isidório ama como quem se ama o reino dos bichos e dos animais
não lembro da última vez em que ele falou o meu nome
tem preferência por me chamar de um jeito que só ele pode
odeia que roubem suas ideias, mesmo as mais óbvias como a cor de nossa pele
*
Quando não se provoca barulho algum
possivelmente eu dou risada de quem prefere as palavras que nunca li
procuro sinônimos para não repeti-las
contrario alguma coisa da minha própria cabeça
eu disse: pedro, já pensou se você gaguejar?
o meu tio tentou enfiar a língua na minha garganta
eu fui correndo contar ao meu pai
ele não fez nada
e eu nunca imaginei pedro gaguejando
dia desses dei de chorar como tem sido desde o primeiro contra-ataque
inoperante
quando não se provoca barulho algum
ninguém manda aceitar porque dói menos mas no final de até agora
nunca mais parou de doer
e ainda assim, mesmo sem querer, eu insisto em dizer as mesmas palavras
falar sobre tangerinas ao invés da história que todos esperam que eu conte
falar de novo, repetir até me sentir calma demais e exatamente por isso cansar
quase como acreditar em movimentos contínuos
quase como pertencer a uma vanguarda de qualquer coisa
quase como meninas brancas plantando bananeira sem calcinha
o meu medo da raiva nunca me protegeu de nada
*
Versos também são escritos dentro do ônibus
veja, como escrevo feito quem tem pressa de voltar
nunca quis nada que não fosse tão ligeiro
não me peça para ter calma
não me peça para seguir as suas normas poéticas
a verdade é que isso nunca me interessou
lembrei de um outro homem
falando sobre esse negócio não pertencer a um tipo especial de pessoa
mas a minha mãe não sabe ler
e os homens não sabem de quase nada
pois foi o que faltou nas aulas de português
pois foi o que não falou aquele professor que nos pedia silêncio o tempo inteiro
eu odeio a calma, o silêncio e o capítulo do livro que traz um texto sobre o exílio no beleléu daquele
cantor de merda que distribui flores
versos também são escritos dentro do ônibus
um poema não é só como quem começa e mesmo perdendo consegue lembrar de alguma parte
não se pode falar de amor de um outro jeito
mas os meninos brancos esqueceram
não ouço o canto dos pássaros
não vejo árvores bonitas
não me banho em mares tão azuis
e é exatamente por isso
que eu também sou poeta
*
Pedra
aprendi que o tempo de preenchimento sanguíneo em um absorvente
diana será o mesmo para cada uma de nós em dias de sexta-feira
aprendi a odiar poemas com palavras como celas e pessoas ilustrando conquistas históricas
aprendi a lamber os seus dentes e depositar o seu gosto em minha gengiva durante exata uma semana
aprendi a confeccionar cotonetes com o laço de minha calcinha
dessa vez
e talvez a mais longa,
isso não é
sobre a quantidade de tempo que leva para uma carne ficar cor verde
ou sobre como dipironas são o suficiente para curar o estrago da cor verde de uma carne
muito menos sobre como vai de mal a pior um congresso defendendo projetos de leis que consideram o nosso amor, regalia
ainda escrevo como quem se escolhe palavras pela boca
ainda escrevo com uma multidão de mulheres me atravessando os olhos
ainda escrevo me sentindo galo em uma rinha
no meio do caminho havia uma pedra
e nós
fizemos amor em cima dela
*
Descarte de escravos no mar mudou o hábito dos tubarões
Escrevo para criar outras imagens de você deitado
Para fazer com as próprias mãos justiça
E lembrar que aqui não se pode temer, nem se pode esquecer
Descarte de escravos no mar mudou o hábito dos tubarões
Meu amor, não esqueça de não acordar com uma bala perdida nas costas
Eu tenho pressa de voltar, de percorrer na cabeça o caminho de casa
Se a periferia é extensão de quilombo, o futuro só pode ser ancestral
Estamos à beira do precipício que é sonhar
Mas ter medo de acordar, nunca foi uma opção para olhos como os nossos
Minha boca aberta é arma
É reparação histórica
É contar a verdadeira história por eles mal contada
Como o amor para quem teve seus filhos arrancados dos braços
Para quem presenciou seus companheiros apanhando sem razão
Branco até aguenta preto resistindo
Mas nunca revidando
É inadmissível que todas as dores do mundo
Seja a única coisa que eu possa falar