Sete poemas de Maria Clara Parente
A poesia de Maria Clara Parente é uma das formas que ela tem de habitar o mundo. Pesquisadora de mudanças sistêmicas, a jornalista, atriz, apresentadora e documentarista, é mestranda em Literatura, Cultura e Contemporaneidade na PUC-Rio. Estudou Comunicação para Transição na Schumacher College, na Inglaterra, e é cofundadora do projeto de pesquisa audiovisual This is not the Truth, que questiona percepções antropocêntricas de mundo, pelo qual dirigiu a série O que está emergindo, que ganhou o prêmio de melhor roteiro no Rio Web Fest 2019 e melhor série no festival Fica.Vc, além de ser exibida em festival na Espanha, Ucrânia e Alemanha.
Em parceria com o canal Hysteria, da Conspiração filmes, roteirizou e apresentou o vídeo Isso não é um manifesto, em 2019. Entre 2016 e 2018, apresentou e dirigiu web séries sobre economia colaborativa e sobre comida sustentável, no canal do Projeto Colabora. É colaboradora da revista digital alemã Emerge. Atualmente, está dirigindo o projeto documental Regenerar em parceria com a Spanda Produtora.
Os três primeiros poemas compõem o livro nas frestas das fendas (Editora 7 Letras, 2021), que marca a estreia da autora. Os quatro últimos são inéditos.
***
sismograma ou registro gráfico de um terremoto de magnitude 7
Eu tinha vinte e seis anos e todos os meus abismos estavam me escapando. Eu vivia em bandos, mas não em bandos de pessoas. Tinha sempre a companhia do vento e suas multidões e certas vezes quando estava cansada, preferia a companhia das montanhas, com suas certezas enterradas. Eu tinha muitos amigos, mas às vezes queria escutar o silêncio, as pessoas humanas têm o costume de deixar a voz matar os silêncios a todo tempo. Escutar o silêncio era algo muito precioso, e só alguns seres tinham essa capacidade. De existir em silêncio vivo, em barulhos profundos. O vento brincava com as suas incapacidades de ser visto, me forçando a ir aonde ele bem queria com meu pouco peso. Nessa terça-feira fui até a praia sem querer, caminhando com as pernas mas sem senti-las profundamente, totalmente imersa em nosso silêncio movimentado. Nesse breve caminho pude me lembrar das palavras que tinham sido gastas nos últimos dias sem sentido, das minhas e dos outros e pensei: o vento só fala quando precisa se movimentar com força, as montanhas quase sempre são caladas, e parecem estar aí desde sempre. Quem sabe a morte é fruto do desperdício de palavras. Esse era um pensamento ventado com pouca pesquisa naquele momento, mas avaliando as coisas do mundo, quase tudo que pouco fala está aí por mais tempo. A areia, o sol, as pedras. Foi assim que passei a usar as palavras com extremo cuidado, porque sempre tive muito apreço por viver.
*
das partidas que nunca partem
na manhã seca de berlim
a celebração é para aqueles que nunca partem
de tão dentro emaranhados
de tão dentro que é quase fora
sem borda
e aí você também lembra
das vezes que o avião foi transportado e você ficou
dos sapatos que atravessam pontes e dos pés que ficam
juntos do outro lado da cidade das festas onde a festa melhor é fora das festas
da comida de hanói que nunca saiu da sua memória e da materialidade etérea dos amores suspensos
– que se salvam das dores da concretude
*
triagem
às vezes
você acha
que está procurando grão de areia
no Alasca
mas às vezes
é só lá
que eles podem estar
*
é impossível atravessar as flores de salto alto
é impossível quebrar as escamas do seu sutiã
é impossível costurar as asas do seu cachorro
é impossível cozinhar a neve dentro da grama
e por mais estranho que pareça
é possível que o ano comece sem carnaval
e
em um ano sem carnaval
é impossível achar confetes nas ruas
(Inédito)
*
oroboros
você me pergunta até onde isso vai
eu digo que dali não pode passar com certeza
e passa
você me pergunta mais uma vez eu digo
até ali, certeza
e passa
você me liga e pergunta até quando
eu digo
agora com certeza não passa do próximo mês
e passa
a certeza morde o próprio rabo
(Inédito)
*
a vida é um sabonete cheio de cabelo
desfazendo enquanto faz o seu trabalho
criando nós pouco geométricos
submetidos a gravidade e a todo tipo de intempérie
desfazendo os coágulos de qualquer coisa
encontrando o que tinha ficado na gaveta
rindo da sua escolha por ali
quando todos os caminhos desaguam aqui
a vida também pode ser os 180 dias que os burocratas demoram para afirmar que as suas palavras são suas
e também é a insistência das ombreiras no armário da sua avó,
que proclamam a falta de sentido que se cheira em todo canto.
(Inédito)
*
habitar o espaço
criar junto com os potes quadrados da geladeira
criar junto com as esferas do chão do metrô
criar junto com a fila de espera do detran
criar junto com as placas que dizem ‘última saída’
criar junto com as algas mergulhadas em água salgada
criar junto com as embalagens de iogurte
criar junto com o botão solto da sua blusa
criar junto com o papel de alumínio
criar junto com a cadeira que segura a sua pele
criar junto com os icebergs derretidos no atlântico norte
criar junto com a terra de dentro do sapato
criar junto com as cartas nunca enviadas
criar junto com os papéis de trident
criar junto com a gillette azul
criar junto com o lixo radioativo
criar junto com a máscaras descartáveis
criar junto com os ovos de páscoa enfileirados
criar junto com o alimento orgânico dentro de duas embalagens de plástico
criar junto com o bueiro aberto
criar junto com a caixa da amazon
criar junto com o fio da eletricidade
criar junto com a chuva ácida
criar junto com o ensino a distância
criar junto com a geosmina
criar junto com a pilha palito
criar junto com os mosquito da sua casa
criar junto com as bactérias que nos trouxeram até aqui
alguma forma
possível
de co- habitar
o espaço
(Inédito)
(Foto de capa: por Yulli Namamura).