#Tbt Cine – “A Caça” (2012)
A Caça. Direção: Thomas Vinterberg. País de Origem: Dinamarca, 2012.
Alerta! Contém spoilers!
A Caça, de Thomas Vinterberg (diretor do excepcional e pungente Festa de Família (1998), um dos grandes títulos do movimento Dogma 95, e de A Comunidade (2016), que conta com uma atuação altamente elogiada de Trine Dyrholm), traz Mads Mikkelsen (o Dr. Hannibal Lecter, da série Hannibal (2013-2015), produzida pela NBC) no papel de Lucas, um professor do jardim de infância, recém-divorciado e que tem o respeito das crianças e colegas de trabalho. Lucas acaba de obter a guarda do filho, e vive em comunhão com a família do melhor amigo, Theo. Nesse ambiente, de solidão fraternal, Lucas é um assíduo frequentador do clube de caça local, que é uma tradição na pacata cidade do interior da Dinamarca em que reside, e um dos seus membros mais festejado.
Apesar do clima ameno e das amizades, Lucas é tímido e parece ter perdido a intensidade pela vida. Ele desperta a paixão de uma funcionária da escola, com a qual se envolve romanticamente, porém sem manifestações de enlevo.
Porém, essa paz melancólica acaba quando Klara, filha de Theo, uma menina de 5 anos, da qual Lucas vez ou outra zela pela sua segurança – já que ela vive, geralmente, isolada, sendo ainda imaginativa – tem a mania de fugir de casa devido às brigas do pais, os quais não a compreendem, implica-o, ingenuamente, em uma acusação de abuso sexual. Horas antes, a menina havia dado um beijo na boca de Lucas e ofertado a ele um coração. O professor explica à criança que beijo na boca é algo entre “papais e mamães” e que o presente poderia ser entregue a uma professora ou a um aluno da idade dela. Sentindo-se rejeitada, Klara não lida bem com a situação e, durante uma conversa com a diretora, usa uma frase imprópria proferida por seu irmão quando, de passagem, o rapaz mostra a ela uma cena de um filme pornográfico. A diretora, seguindo um entendimento de que crianças não mentem (ainda mais sobre algo tão grave), internaliza a culpa de Lucas, e, em seguida, chama um psicólogo à escola, que interroga Klara, que tenta desfazer o mal-entendido, porém é conduzida pelo profissional na entrevista e acaba por confirmar, mesmo que não intencionalmente, o fato.
A partir daí, Vinterberg apresenta um drama que trata de injustiça. Sim, injustiça, pois Lucas, sabemos, é inocente. Escapando da armadilha de um jogo entre gato e rato, que poderia manter um suspense sobre uma possível culpa do professor, o cineasta dinamarquês, com o apoio de uma magistral interpretação de Mikkelsen (que compõe seu personagem com olhares, silêncios dilacerantes e dignidade), organiza um pequeno estudo sobre vida em comunidade, partindo de uma suspeita que possa garantir uma indignação geral, submete pessoas ao linchamento público sem ter provas incontestáveis de sua culpabilidade. Em tempos de paranoia, a histeria coletiva é um mal dos mais tenebrosos.
Além da injustiça, a irracionalidade é um dos temas em questão. Mesmo que a pedofilia seja um dos mais cruéis crimes imagináveis, como devassar e destruir a vida de alguém, baseando- se tão somente na crença da não mentira infantil? Klara não apresenta sintomas físicos ou psicológicos de abuso, mas, aos poucos, é estimulada pela mesma histeria coletiva, outras crianças dizem ter sofrido o destino da menina. Então, quando entram o discernimento e a lucidez adulta? Como dar credibilidade às crianças e evitar represálias a elas? A irracionalidade que toma a cidade, um local onde o esporte número 1 é a caça, incapacita as pessoas de lançar dúvidas ao fato e o julgamento precipitado não vitimiza apenas Lucas, mas também as crianças que acabam por acreditar na fantasia coletiva de que foram igualmente molestadas.
Aos poucos, a vida de Lucas vai se tornando impraticável: logicamente, perde o emprego, as amizades, a namorada, a polícia vasculha sua casa e os vizinhos são ameaças constantes. Apoio, o protagonista somente encontra no filho Marcus e em um amigo, que é padrinho de Marcus. Esse abandono transforma-se em uma resistência inactiva (até porque não lhe foi dado o direito à defesa), racional contra a agressividade da não-razão, da violência transvestida em justiça e indignação louvável. O julgamento e a condenação antecipando a clareza de análise do fato, da fundamentação da culpa é o alicerce de uma predatória sede de vingança contra a possibilidade do mal. Então, toda sociedade tida como justa procura essa tal justiça, mesmo que venha a se confundir com aquilo que é injusto. Assim, a condenação moral se sobrepõe às normas jurídicas. Tal condenação busca apontar e afastar o elemento causador da insegurança. A partir disso, qualquer um é executor desse acordo táctil (movimentado pela certeza cabal) de culpa do Outro. Lucas se vê persona non grata em estabelecimentos e se torna passível de violência, caso se recuse a aceitar a sentença de banimento da esfera social. A histeria coletiva tende a normalizar essa violência contra o acusado, já que ela é plena de assertivas e se defende com veemência (irracional) contra as probabilidades de um equívoco.
Porém, o roteiro de Tobias Lindholm e Thomas Vinterberg não vilaniza as personagens. São moradores que tentam preservar o mínimo de pureza, anulando a dúvida e presunção de inocência. Já não se lida com o “se for verdade…”, ainda mais por estar relacionado à quebra de confiança. Mas aí está a fragilidade da concepção de verdade, já que é dependente do que se sabe e do que se vê. Vinterberg constrói a tensão com precisão, com o auxílio da montagem enxuta de Anne Østerud e Janus Billeskov Jansen, que evita qualquer excesso, e da fotografia (a cargo de Charlotte Bruus Cristensen), que gradualmente, vai se tornando mais escura.
A Caça é uma produção sobre os absurdos que podem ser cometidos pelo espírito coletivo, sobre uma sociedade que vive sob a ameaça do medo e da culpa. Mesmo na paz, é preciso encontrarmos monstros para nos mantermos alertas. Quando não há, cria-os. São exemplos desse método que alimenta o comportamento de turba em busca de “justiça”, os casos da Escola Base, no Brasil, e o da família McMartin, nos Estados Unidos. O caso da Escola Base, ocorreu há mais de 20 anos em São Paulo, quando a vida de sete pessoas (proprietários e funcionários da escola) foi devassada pela opinião pública após acusações infundadas de abuso sexual. Ainda, o famoso episódio estadunidense da família McMartin, nos anos de 1980, em que os proprietários de uma escola para crianças, em decorrência de graves denúncias de molestação dos alunos, tiveram a vida exposta pelos meios de comunicação com o auxílio de psicólogos infantis, que acabaram influenciando as crianças nos depoimentos a admitir os abusos. Em 1996, foi lançado um telefilme sobre o caso, que, no Brasil, recebeu o título de Acusação, cuja produção executiva é do cineasta Oliver Stone (Platoon e JFK: A Pergunta que Não Quer Calar).
Ainda que A Caça seja um ensaio sobre injustiça, há como não cometer um zelo excessivo em casos de pedofilia? Talvez esse seja um dos poucos crimes que não tenha sido afetado pela banalidade do mal de que fala Hannah Arendt, já que dificilmente se pode ficar indiferente a esse aspecto sombrio da natureza humana. No entanto, é a violência que mais impossibilita uma reflexão acerca dela. A condenação ao ato é sumário. Mesmo em sociedade nas quais as crianças não são tratadas com a devida atenção e cuidado que merecem.
No fim, A Caça aponta para uma reconciliação possível. Lucas, mesmo de volta à sociedade que o repeliu moralmente e o agrediu fisicamente, não parece confortável. Há algo no ar. O desfecho nos lembra que apesar dos prodígios do perdão, os estragos já foram feitos. A inocência não afasta a desconfiança, nem quem conviveu com a injustiça poderá se sentir seguro novamente.