#Tbt Cine – “As Corças” (1968)
As Corças. Direção: Claude Chabrol. País de Origem: França, 1968.
Frédérique (Stéphane Audran), herdeira de uma garagem de barcos em Saint-Tropez, e Why (Jacqueline Sassard), uma artista de rua que desenha corças, são as personagens centrais do thriller psicológico “As Corças” (Les Biches), conduzido por um Claude Chabrol que explora ao limite o tédio de uma burguesia em franca decadência, os caminhos tortuosos do ciúme, os jogos emocionais que se transformam em obsessão e uma tensão sexual que se aproxima da perversidade.
Uma tarde, Frédérique passeia por Paris e se depara com uma jovem desenhando uma corça na calçada da Ponte des Arts. A rica mulher entrega 500 francos para a garota. Intrigada, Why quer saber o motivo da generosidade. Frédérique responde que a considera uma artista talentosa. Entre o cinismo de uma e a descrença da outra, o enfado e a curiosidade vão se interpenetrando, construindo uma relação em que manipular é um exercício para vencer as horas que passam. O gesto desapegado ou perdulário da milionária faz com que Why a acompanhe até o seu luxuoso apartamento. Mais tarde para Saint-Tropez. Na mansão de Frédérique estão hospedados dois amigos, que são pseudo-intelectuais histriônicos e mordazes. A milionária e a jovem hippie estabelecem uma relação de intimidade, porém atravessada por uma sensação desconcertante de insatisfação. Olhares, gestos e silêncios traduzem o enfado que impossibilita o idílico de se manifestar.
A certa altura, Frédérique começa a dar ordens absurdas a Why e a exigir sua presença ao mesmo tempo que a isola, encena humilhações. Em um jogo de pôquer, a artista conhece o arquiteto Paul (Jean-Louis Trintignant), com quem se envolve sexualmente para manter o domínio de si mesma e dar o troco em Frédérique. A milionária responde à ação de Why seduzindo Paul. Revela a garota o que ocorreu e diz mais, que Paul e ela se apaixonaram, anuncia o casamento. O casal viaja para Paris. Why continua na residência de Frédérique. Ao retornar, uma nova revelação abala a jovem, os três viverão sob o mesmo teto. Está estabelecido o conflito. A atração e a hostilidade entre Frédérique e Why traça contornos trágicos a relação forjada num sufocante desejo de se livrar do inferno do vazio existencial.
O suspense dramático de Claude Chabrol é construído com poucos diálogos, sendo os corpos – gestos e distância funcionando como interlocutores dos sentimentos – e o não-dito peças-chave na edificação da narrativa. Os movimentos de câmera e planos longos de Chabrol, que se tornariam suas marcas registradas, contribuem na elaboração da ambiguidade e do fatalismo que acompanham a obra fílmica (e o seu cinema). A fotografia de Jean Rabier também é um dos destaques pelo uso da luz, em que a exuberância de Saint-Tropez e a ostentação dos espaços nunca ultrapassam a claustrofobia que se impregna indelevelmente as personagens. Já a edição de Jacques Gaillard joga com as expectativas e percepções do espectador. Aliado ao roteiro, esse é um dos méritos da obra, a de estabelecer um embate entre o observador e o realizador, nada é óbvio – ainda que escape certa antecipação da tragédia anunciada –, e a frustração do que se espera e do que já é esperado fazem parte da mise-en-scène.
Um escândalo na época do seu lançamento, “As Corças” trabalha a sexualidade de Why e Frédérique sem ser explícito. São amantes, consomem-se até a rejeição. Sabemos que são bissexuais, mas o caso amoroso entre elas permanece nas entrelinhas. Além disso, a posição do homem na trama chama a atenção. Paul é um homem-objeto e interessado no dinheiro de Frédérique. Em certo momento, interessa-se pelo mènage-à-trois proposto por Why. E a cena é uma das mais belas e intrigantes do filme, feita com o mínimo de palavras, só com olhares e os corpos em êxtase, e Frédérique se forçando a recusa, já na porta do quarto.
“As Corças” é um olhar voyeurístico para a natureza humana. A ociosidade de Frédérique a faz engendrar modos de fugir da monotonia. Why surge como novidade e se posiciona entre a vontade de conhecer e o deslumbramento. Ambas maquinam estratégias para continuar o processo iniciado na ponte, em Paris. Mas, na jornada, Why vai perdendo sua identidade, abalando-se pelo modo frio e certo desprezo que a sua anfitriã e amante passa a tratá-la. O doppelgänger se faz presente, a menina hippie se veste como Frédérique, por querer ser ela e/ou por desejá-la. Neste sentido, “As Corças” se insere na tradição de filmes que colocam mulheres em conflito ou em colapso: “Persona” (1966), de Ingmar Bergman, “Três Mulheres” (1977), de Robert Altman, e o mais recente “Rainha do Mundo” (2015), de Alex Ross Perry.
Ao longo de sua carreira, Claude Chabrol explorou a senda do horror psicológico e das crises emocionais, a indiferença ou a crueldade humana evidenciando, como marca rubra, os vestígios das mais diferentes opressões sofridas pelas mulheres ou todos aqueles massacrados pela ordem e moralismo vigentes. Seus dramas, suspenses e filmes policiais são reflexos pungentes desses danos.
Pela interpretação de Frédérique, Stéphane Audran foi laureada com o Urso de Prata de melhor atriz no Festival de Cinema de Berlim. E Jacqueline Sassard (que se aposentou, aos 28 anos, após as gravações do filme de Chabrol) está impecável como Why. “As Corças” pertence a essas duas mulheres.