#Tbt Cine – “Paprika” (2006)
Paprika. Direção: Satoshi Kon. País de Origem: Japão, 2006.
A animação de Satoshi Kon, que faleceu em 2010, deixando obras instigantes como Perfect Blue (1997), Atriz Milenar (2001) e Tokyo Godfathers (2003), em sua 1 hora e 30 minutos de duração, caminha pela tênue linha que separa a realidade do sonho. Na verdade, especula sobre oposições/contrários que estão imbricadas de tal forma, que, entendê-las como intrínsecas, conduz a uma jornada ao limite de nossas percepções sobre o que realmente nos faz humanos, nossas criações, desejos, perversões e os motivos para realizar o que consideramos determinações morais. Paprika, de 2006, adaptação do romance de Yasutaka Tsutsui e último longa-metragem de Kon, é, certo modo, uma discussão ética sobre o uso da tecnologia, se há recônditos humanos que devem permanecer distantes da investigação e soluções científicas ou se, para a ciência, o limite é o próprio bem do ser humano e o recurso uma mera ferramenta.
A história se inicia com um dispositivo, o DC Mini (mini capturador de sonhos), concebido pelo Dr. Tokita, que é usado em terapias psiquiátricas para descobrir as causas inconscientes do trauma de um paciente. Uma vez ligado a uma máquina, a tela exibe o conteúdo do sonho e o seu significado pode ser compreendido. O DC Mini possibilita também que sonhos sejam compartilhados, deste modo, Paprika, a psiquiatra e pesquisadora Atsuko Chiba, auxilia na descoberta interagindo com o paciente. Quando três dessas invenções, que ainda não foram aprovadas pelo Governo, são roubadas, a equipe de cientistas que trabalha com o DC Mini precisa encontrar o criminoso já que o aparelho permite que uma pessoa possa entrar nos sonhos de outras, o que pode ocasionar um desastre, o inferno de seres presos em suas ilusões e traumas.
E a caça à identidade do terrorista implica no embaralhamento entre sonho e realidade. E isso constitui as questões éticas que acompanham a obra: uma delas é o imperativo de que aquilo que pertence ao ser humano e ao seu mundo deve ser tratado como sagrado, o sonho sendo um desses campos intocáveis, significando deter o avanço tecnológico que pode resultar no fim da humanidade, e o outro se tal aspiração não traz em si a intenção de possuir o poder de controlar o que delimita os valores e artifícios de uma humanidade a se conhecer, criando barreiras para as realizações que seriam benéficas para a continuidade da espécie.
Essas proposições fazem parte de um dos subtemas de um filme com várias camadas. Satoshi Kon constrói essa fronteira entre sonho e realidade a partir de pesadelos pessoais – como o do Capitão Kogawa, que tem um sonho recorrente no qual persegue um bandido e sempre trava quando se depara com uma vítima de homicídio e acaba deixando escapar o assassino – e um sonho coletivo de proporções catastróficas (a aparência de felicidade que esconde o horror da encenação), um desfile com animais, brinquedos assustadores (não é a infância, com suas narrativas de lobos maus, monstros no armário, bonecas que ganham vida, um território para horrores que se desencadeiam de modo quase atávico no futuro?), aparelhos domésticos, dispositivos tecnológicos etc. como resultado de todos os sonhos/pesadelos que podem consumir o lado da fronteira em que está a realidade.
Paprika é um filme altamente visual, em que homenagem ao cinema – o que contribui na exploração e explicação de sonhos –, no trauma do Capitão Kogawa, ao passear por gêneros e falar dos seus desejos da juventude (há muito trancados), fantasias e medos da tenra infância, desejos reprimidos, a relação entre cibernética e psiquiatria etc. A partir disso, Paprika apresenta-se como uma “detetive” de sonhos, jogando com as referências e com os assuntos que transbordam da e na obra com mais ou menos profundidade. A psiquiatra Atsuko Chiba, ou melhor, seu alter-ego Paprika, vai sondando e desvendando esses mundos possíveis que os sonhos representam, assim como as sombras que os assombra. Como o DC Mini ainda não foi licenciado pelo Governo, Atsuko o utiliza para vasculhar essa escuridão e descobrir a origem dos tormentos do paciente em seus subconscientes de forma não oficial. O que traz um outro ponto chave: a tecnologia servirá o propósito daquele que a utiliza. O debate entre o bem e o mal é suscitado. A adorável Paprika e o mergulho no subconsciente em busca de uma cura para a patologia de seu cliente e o terrível plano engendrado pelo criminoso que se apoderou e no qual o DC Mini será empregado. Duas visões a respeito da aplicação dos inventos tecnológicos. Paprika é a heroína de um mundo desconhecido a ser desbravado com nossas certezas repletas de insegurança. Oposições que estão intimamente ligadas.
Em Paprika, a fantasia e o real ainda carregam um paralelo com a nossa existência no que concerne à vida que temos e quem gostaríamos de ser, principalmente no pesadelo que nos atormenta. Um policial no presente que desejou ser cineasta no futuro. Além disso, a perda drástica de um amigo. A não realização de sonhos pode ser um fantasma e se unir a soma daquilo que nos pesa sobre os ombros. Já a Atsuko, uma pessoa séria e objetiva, tem em Paprika uma mulher aventureira e mais afeita aos impulsos. A psicanálise – Freud – é presente em Paprika, com duplos, Ego etc. a movimentar a trama intrigante.
Satoshi Kon orquestra em Paprika um espetáculo fascinante. Os personagens são bem detalhados, expressivos. Os sonhos são verdadeiras sessões de delírios e qualidade técnica. Psicodelia e crueldade. Eles surgem, alteram-se e interpenetram-se de modo orgânico. A destacar a cena de abertura no circo e quando ocorre o sonho dentro do sonho que afeta a todos em um mix de perturbações e desejos que auxilia a dar contornos às dúvidas sobre o argumento e dar um desfecho aos arcos de cada personagem.
Pode-se dizer que Paprika é uma obra sobre o destino humano, representada pela borboleta azul da lenda oriental (a da jovem obstinada que desafia um sábio a adivinhar se a borboleta em suas mãos estava viva ou morta), que surge em pelo menos duas cenas capitais – sugerindo caminho e disputa. Em nossas mãos está o rumo que devemos tomar, somos responsáveis pelas nossas ações e suas consequências. Ainda que a tecnologia venha a ocupar espaços inimagináveis na vida humana, apenas a nós cabe o modo de conduzi-la.
Sonhos bizarros, lógica e beleza, Paprika é um filme para ser visto e revisto.
WalterMuller
Análise mais tesuda e consistente do filme!bom falar doque importa é sair das banalidades ilustradas!