Teia labirinto: da diversidade sexual à pluralidade da escrita erótica
Teia labirinto: da diversidade sexual à pluralidade é uma curadoria realizada pela escritora Carla Cunha (autora de Vermelho Infinito – Ato 1 [em delírios e espasmos], 2019)
Ao pensar erotismo, pensa-se na mais pura liberdade de expressão, da linguagem elaborada a mais simples, da métrica poética aos contemporâneos escritos nas redes sociais, das narrativas concisas as obras densas, afinal, o erotismo a todos pertence.
Aqui, a seleção de 10 textos eróticos, escolhidos para comemorar a pluralidade da escrita e da sexualidade, de autores contemporâneos aos consagrados, configurando uma seleção que pretende excitar o leitor para a busca de outros textos e percepções dentro da Literatura erótica.
A curadoria cria uma teia para enrodilhar o leitor na enigmática cadeia de sensações e vontades e dali deixá-lo no clímax de sua própria volúpia.
Assim, convida a todos para que se deliciem.
Poemas: Ponto G de Luiza Silva Oliveira; A Receita de Bolo de Claire Feliz Regina; Passaralhos e Xoxotas voadoras de Ivan Sitta; Tuas mãos são quentes, muito quentes de Gilka Machado; Tenta-me de novo de Hilda Hilst; Batom de Beth Brait Alvim; Confissões de uma Louca de Michelle Bernard; Mimosa Boca Errante de Carlos Drummond de Andrade; Os Tsurus de Graziela Brum; e Vizinha de Ana Farrah Baunilha.
***
Ponto G (Luiza Silva Oliveira)
Uma vulva risonha
e
folhas rasuradas da bíblia voam para o firmamento
um céu com rubor
molha o útero carente
do corpo sedento
da criação exultante do divino
crianças correm no parque
folhas de outono se despedem
é o calor molhado da genitália feminina
em súplicas
quero mais!
ventre livre
algemas roubadas
saindo do velório
das represálias
gemidos de prazer
se apossam de seres voláteis
libertos em grunhidos
que gritam
estou na fase oral
quero chupar!
*
A Receita de Bolo (Claire Feliz Regina)
Meu vizinho queria fazer um bolo,
me pediu a receita.
Eu não tinha a receita,
mas eu tinha vinte anos!
Fui ajudar…
Não tinha farinha para ele amassar
com as mãos,
ofereci meu corpo
e ele amassou.
Não tenho açúcar, ele me disse,
ofereci meus lábios,
e ele beijou.
Ele era bom cozinheiro.
Pois o leite para ferver,
o leite fervia no meu corpo inteiro.
Nós dois queríamos fazer o bolo
mas, e a receita?
Ele abriu o caderno,
estava escrito,
me ama.
Não fomos mais para a cozinha
fomos para a cama.
*
Passaralhos e Xoxotas voadoras (Ivan Sitta)
Aí que delícia
esses seios inflantes,
a vulva encharcada
e o cuzinho piscante,
a bunda molhada com o suor da barriga do moço
que pinga nas costas e escorre no fundo do poço,
como é belo o asterisco que fica em cima da lingueta,
quando de quatro chama-se cu e fica acima da buceta.
Ao piscar ele diz vêm, num gesto belo e enaltecido
chamando pra dentro do seu “ eu “,
o colosso de nervo engrandecido.
Enrijecido com o vinho espesso do prazer nos vasos,
avermelhado para o vai-e-vem sem atrasos.
Difícil é agora que ereto,
analisar qual buraco primeiro que vai ser,
entre boca, cu e xoxota
decidir qual primeiro foder.
A cabeça lateja, o cuzinho pompoa,
A boca que beija, quer a xoxota que voa,
xoxota que voa e sem gosto de alho
pra valer ser perseguida
pelo amigo Passaralho.
*
Tuas mãos são quentes, muito quentes (Gilka Machado)
Meu corpo todo, no silêncio lento
em que me acaricias,
meu corpo todo, às tuas mãos macias,
é um bárbaro instrumento
que se volatiza em melodias…
e, então, suponho,
à orquestral harmonia de meu ser,
que teu grandioso sonho
diga, em mim, o que dizes, sem dizer.
Tuas mãos acordam ruídos
na minha carne, nota a nota, frase a frase;
colada a ti, dentro em teu sangue quase,
sinto a expressão desses indefinidos
silêncios da alma tua,
a poesia que tens nos lábios presa,
teu inédito poema de tristeza,
vibrar,
cantar,
na minha pele nua.
*
Tenta-me de novo (Hilda Hilst)
E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.
*
Batom (Beth Brait Alvim)
Lina chegou. O licor de uísque lambuza meus lábios. É assim melado que a beijo.
Ela vem mansa, lingerie sempre à mostra.
Gosto de induzir Lina a lamber entre meus dedos. Bem na porta do apartamento. Se vem gente, melhor.
Hoje comecei o dia ouvindo Carmina Burana. Ela logo chega, eu sei.
Lina tocou duas vezes. Imaginei-a impaciente, umedecendo os carnosos lábios, como eu gosto. Deixei tocar de novo. Aumento um pouco o som. Quero que ela ouça. Espero os chamados, as batidas secas na porta.
Lina linda, disputávamos nossos namoros juvenis. Lina vencedora. Alta, sensual, a mulher-objeto que todo homem deseja possuir até a morte.
Aumento mais o som. Ela já espanca aporta. Aguardo, atenta, os gritos. Sorvo um gole grande. Doce. O beijo doce. Os lábios. Sempre teimo em sangrar os grossos lábios, sugar saliva e sangue e embriagá-la com toxinas de seu próprio insaciável e prepotente sexo.
Lina roubou meu primeiro amor. Moderna, fazia sexo na adolescência como imaginávamos só Marilyn Monroe fazendo.
A dor de combater desejos me veio cedo.
É hilário. Eu chorava e Lina me consolava, afagava lenta meus cabelos e, entre os soluços, suspirava dizendo como Ricardo a deixava tesa, eu soluçava mais, ela me acariciava, e sussurrava, pontuada, como submetia Ricardo. Até lamber meus dedos, ela dizia, e eu sentia dor, prazer, dor.
Lina, meu bem, esmurra a porta. Isso. Deixa a alça cair como ontem e anteontem. Mostra a renda preta, combina com a liga que te dei naquele natal. Que escândalo, Lina.
Carmina Burana mais forte. Viro mais um copo. Queima. Apago as luzes. Mais gritos, mais tesão.
Choro longo, feito criança perdida.
Gosto indescritível.
Linda Lina. Esfrego a boca melada no teu telegrama suicida. Vermelho. Como as manchas que sempre imprimi nos teus alvos lábios, vulva rosada. Pura sabedoria. Sábia, te escravizei, mil artimanhas, mil orgasmos, e o gosto de sentir dor.
Mordo, Lina. O pranto adolescente, mero pano de fundo. Agora mordo.
Urra, Lina. Arranha a porta. Minha amiga. Meu mito, meu algoz. Diz que vai se matar. Que feio, Lina.
Assim te quero. Assim. Ingerindo veneno. Como se teu ventre, resgate ancestral, se ungisse do líquido que me falta.
Silencia, Lina. Pára. E fica atenta aos engulhos, ânsias, dor de parto invertido. Pára.
Carmina Burana, meus lábios carmim, é som rouco da faixa finita, arranhando o selo clássico.
Desligo o som. Fecho a porta do nosso quarto. Constato o silêncio na escuridão. Ruído algum. Ótimo. Não consigo dormir com barulho.
*
Confissões de uma Louca (Michelle Bernard)
Gostava de fazer bastante espuma com o sabonete e depois, com as mãos brancas começava a acariciar lentamente minha própria pele, como se fosse a primeira vez que a tocasse, sentia os carocinhos se formarem, os bicos dos seios ficando rígidos e sensíveis, o clitóris aumentando consideravelmente de tamanho, quando sentia que a minha buceta já estava pulsando de desejo, enfiava os dois dedos para sentir o melado escorrendo, depois tocava uma siririca até gozar.
*
Mimosa Boca Errante (Carlos Drummond de Andrade)
Mimosa boca errante
à superfície até achar o ponto
em que te apraz colher o fruto em fogo
que não será comido mas fruído
até se lhe esgotar o sumo cálido
e ele deixar-te, ou o deixares, flácido,
mas rorejando a baba de delícias
que fruto e boca se permitem, dádiva.
Boca mimosa e sábia,
impaciente de sugar e clausurar
inteiro, em ti, o talo rígido
mas varado de gozo ao confinar-se
no limitado espaço que ofereces
a seu volume e jato apaixonados,
como podes tornar-te, assim aberta,
recurvo céu infindo e sepultura?
Mimosa boca e santa,
que devagar vais desfolhando a líquida
espuma do prazer em rito mudo,
lenta-lambente-lambilusamente
ligada à forma ereta qual se fossem
a boca o próprio fruto, e o fruto a boca,
oh chega, chega, chega de beber-me,
de matar-me, e, na morte, de viver-me.
Já sei a eternidade: é puro orgasmo.
*
Os Tsurus (Graziela Brum)
Porque um espasmo orgástico me passou o corpo, e eu não mais me contive, te apertei em meus braços como se te conhecesse há séculos. Aninhamos nossos corpos na poltrona marrom no canto do quarto. Perto da janela, uma luminária incandescente desvendava nossas faces. Vi teu rosto de barro sobre mim. Vi teus músculos e símbolos, dessa tua natureza de raízes retorcidas agarrada à terra primitiva.
Não sei se tinhas o órgão do diabo ou os beijos de deus, mas quis mergulhar em teu espírito selvagem de floresta, na ancestralidade das tuas Áfricas. Te quis o mais próximo de mim. A tua beleza de fogo soltando flocos de tisne e marcando a minha pele branca com teus grasnidos. Te contei meus medos em hálito ferruginoso. Padeci de temor e tu a mim descobriste. Tu violaste a caixa de pavores e me livraste dos meus abismos. E eu em ti sou uma Deusa lúcida que te oferece rosas, perfumes, desejos. Ofereço tudo o que há de sensível em mim.
Escuta, escuta agora os meus sussurros te chamando para o meu leito. Ouve as minhas convulsões te pedindo fica, fica mais. Sente a minha mão segurando tua cintura, querendo te arrastar para minha pele. Entende, por favor, entende que o amor está no silêncio, no aproximar de mundos distintos, nessa sobreposição. Fomos duas esferas gigantes. Agora única, maior, que cria e recria tsurus brancos. Cinco tsurus e seus múltiplos pássaros. Permita, amor, permita que a madrugada venha, só para aí, bem cedo, a nossa esfera explodir para soltá-los e os tsurus em bando partirem.
*
Vizinha (Ana Farrah Baunilha)
Agora (sim, tempo justo)
escuto a mulher às 16:57
tem uma mulher que geme, ela geme bonito, parece feliz
não ouço por tara, ouço porque não há saídas, sou obrigada
_também não desgosto_
Ela geme e eu sigo naturalmente fazendo
as coisas todas que eu invento de fazer:
lavar toalhas e panos de louça, só para sentar na máquina
adoro o circuito curto, quando centrifuga
é bem bom.
Talvez ela tenha uma máquina também
talvez seja um homem de carne
talvez seja ela sozinha com ela mesma
achei bonito o gemido semi-discreto
um tanto abafado, como por tentativa da própria
mas eu escuto, parece sinfonado, sincrônico
Deu de silenciar, logo agora
(abri as janelas para ouvir melhor)
e minha cabeça não para.
Preciso percorrer os andares, saber de quem era a voz
é instinto meu, animalesco de curiosidade felina
Quem é essa, que geme tão bonito?
Mais bonito e menos escandalosa que eu?
Preciso saber.
***
Carla Cunha é de São Paulo/SP. Escritora de Literatura Erótica e Pornográfica, divulga textos no blog Carla Cunha. Em 2019, lançou o texto Vermelho Infinito – Ato 1 (em delírios e espasmos).
(Foto – Capa: O Êxtase de Santa Teresa, de Gian Lorenzo Bernini [1647-1652]).