Três contos de Ana Paula Pacheco
Ana Paula Pacheco é contista, crítica literária e professora de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. Publicou contos nas revistas Piauí, E, Ficções, entre outras. Também publicou os livros: Lugar do mito (São Paulo, Nankin Editorial, 2006) e A casa deles, contos (São Paulo, Nankin Editorial, 2009). Prepara atualmente um livro sobre cinema brasileiro contemporâneo e um novo livro de ficção.
O título “Investimentos” se refere aos 3 contos.
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INVESTIMENTOS
Touro
Quase sem tocar o chão eu o rodeio, invisível, não tenho intenção de provocá-lo. Poderia sumir atrás dos quadris enormes sem prejuízo da minha existência. Um bailarino leve, como em livros infantis podem ser os touros ou como são na vida real — real! — mais de mil quilos acima do meu peso. Ele se ergue sobre as patas dianteiras e prepara o coice. Então se trata de um desafio dirigido a mim ou a qualquer vago pano vermelho, lembrando um outro tempo, quando se alimentava de sangue. Me jogo no chão, sou uma cobra que desliza esgueirando-se pelo corredor de cascos e faíscas abaixo da barriga do touro. É o seu número, a dança que os pés do toureiro imitam. Não sou toureiro, se fosse não estaria embaixo do touro. Centímetros podem salvar minha vida, por isso rastejo. Com um casco ele esmaga uma parte do meu pé, anestesiando-o, fico ainda mais flexível e rastejante; ele me fareja e eu o amaldiçoo, procuro tapar as ventas e me dou conta do tamanho das mãos diante de dois buracos quentes e furiosos. Quase sou tentada a dizer, fúria de locomotiva. Rasto, rojo.
Recupero o fôlego ao lembrar que meu pensamento pode ser mais rápido que o dele, se me deixar uma mínima margem de cálculo sou capaz de. Então enquanto se abaixa aproveito para segurar os chifres e me pendurar neles, de modo a não me alcançarem. Pendurada neles, não podem me fazer mal. Não tenho garras, mas o pensamento que me prende ao touro faz os dedos valerem por sanguessugas. Ficamos em silêncio, um contra o outro. É um dos melhores intervalos em minha vida. E como dura pouco a vida!, mas quem pode reclamar?
O touro se movimenta, ondula o corpo para que eu o solte. Não respiro. Me agarro com força aos chifres, marfim e pontudos, a ponto de me tornar um pêndulo quando a enorme cabeça se ergue. Não quebram, nem sequer trincam. O touro se agita e seus olhos nos meus, vesgos da proximidade, me dizem, ultrapassei os limites. Então ouço a respiração de bicho bravo. A cabeça recua junto com o corpo, retrocedem mais uma vez, o peso inteiro encontra-se praticamente sobre as patas traseiras, inclusive o meu peso somado aos chifres — então num movimento de baixo para cima ele investe com toda a força. O desenho é de uma parábola forçando o céu.
Nesse momento não me seguro mais nos chifres. Por mais que eu lute, sou lançada a muitos metros de altura, talvez dez, ou mais, e quando caio sinto que ele deve ter vencido, pois meus ossos ferem minha própria carne de dentro para fora. Traspassou-a. Sou ele.
Com o que resta do pensamento chuto sua cara de touro, tampo suas narinas com braços e antebraços, acerto mil vezes a barriga e afinal arranco um de seus cascos. Faço-o sangrar até provar a todos que se trata de um bicho vivo, pode morrer, ainda que não sinta não responda não mais respire não morra.
Aproveito a pilha de cadáveres para nos reerguer. Serão mesmo de papel todos os cadáveres?
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Urso
— Não tenho conhecimento específico para discutir questões ligadas à fome. Como todos sabem, defendo-me do risco fisiologicamente, durmo antes que a fome se aproxime. Não confundo, porém, a preservação da minha espécie com o problema de ordem mais geral e evidentemente tenho clareza sobre a impossibilidade de generalizarmos psíquica ou socialmente a hibernação. Quando acordássemos seríamos obrigados a comer uns aos outros. Por isso, porque nunca passei nem passaria fome, e por tantos outros motivos os quais infelizmente não cabe detalhar, é justo considerarem periféricas as minhas considerações. Ainda assim, penso serem úteis aos que vêm refletindo sobre o assunto.
Em primeiro lugar, algumas notas sobre a partícula “sobre”: diferentemente de “acerca de”, “a propósito de”, “com respeito a” etc., que fixam, às vezes de modo vago, a ideia no objeto sobre o qual recai uma ação, a referida partícula tem a vantagem de estabelecer relação precisa e direta entre o que se vai dizer ou fazer e o objeto de que se trata, assinalando a autoridade daquele que diz ou faz. De modo análogo, “por cima” indica a situação local de um corpo em relação a outro; enquanto “sobre” mostra a posição superior de coisa que tem outra debaixo de si.
Fosse possível reter os gestos de um urso durante a caça, quando se coloca sobre a presa, o pensamento não precisaria jamais perder tempo com problemas banais como o da sobrevivência. Sou um urso velho, uso dentaduras, no entanto minhas mandíbulas ainda têm a força de um urso. Mastigo lentamente, admito. De resto, pode ser pior para as presas. Ursos velhos não têm meios de ser misericordiosos, mas confio que estes conselhos compensem alguma coisa no cômputo geral.
De cima para baixo, a patada deve ser contumaz para forçar a queda. Dá certo mesmo nas regiões mais inóspitas: uma foca — digamos, se uma foca pudesse figurar como individualização de uma generalidade referida a um tipo particular de sociedade em determinada etapa histórica — uma foca procura um orifício de respiração no gelo enquanto o urso usa o faro para adiantar-se a ela. Quando emerge, acreditando subir, na verdade está se colocando sob as patas do urso agachado (no caso dele, esta é apenas uma circunstância), pronto para ficar sobre ela. Assim que a foca expira, uma pata dianteira arrasta-a para fora do gelo, rasgando-a já durante o transporte. Em seguida, o urso mata a foca mordendo-lhe a cabeça até esmagar o crânio. A imagem é bela, a cena, apavorante, mesmo quando feita de luz. O nome para essa modalidade — caça de espera — é, contudo, o menos violento possível e chega mesmo a dar um ar de malemolência ao desígnio intacto de comer o outro ainda quente. Igualmente praticável quando há focas descansando no gelo. O nome torna-se mais fantasmagórico — caça de perseguição — pois não há perseguição, uma vez que a comida descansa e ao urso cabe aproximar-se furtivamente, uma sombra clara que em seguida se lança ao ataque.
Outra modalidade praticada, esta em períodos de crise, é a caça em ninhos feitos no gelo. O movimento também aqui se faz de cima para baixo. As garras tomam de assalto um filhote ou dois, à maneira de uma fêmea decidida a trazê-los ao peito. A primeira providência é afastar a pele e chupar a gordura. O urso sorve o quanto pode antes de descartar no gelo as cascas de jabuticaba. No caso dos filhotes, a camada adiposa é parca, sendo preciso empilhar muitos corpinhos. Deve-se considerar que a saciedade imediata não é produtiva a médio prazo. Havendo tempo para esperar melhores resultados, exemplares adultos podem dar cria antes de virar alimento. Em termos de sensibilidade, a devoração de filhotes é um pouco brutal para quem a assiste, dir-se-ia, até mesmo para nós. No entanto, não há como discutir com os que renunciaram à razão. A força do gesto em qualquer das três modalidades pode compensar o trauma da plateia, já que é possível aprender imitando.
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Intimidade
Quando as ações caem ele fica desanimado. Dá dó. Triste a ponto de eu toda vez pensar que alguém morreu ou ele descobriu uma doença grave numa curva do intestino. Não, pela cara já se adivinha, nem preciso conferir no jornal. Despencaram de repente. Se a queda fosse lenta, não seria queda, aí talvez desse pra brecar o desânimo. Ele não está preparado para perder. Anda muito sensível, toda vez acaba lembrando do susto que levou quando o tio que o criou morreu de parada cardíaca no meio da festinha de aniversário. O bolo do tamanho de uma mesa foi dividido entre a vizinhança. Pelo menos o bolo não foi perdido, e porque foi a mãe quem fez, custou só os ingredientes. Os papéis, diz ele, podem desabar como a vida. Ou a vida, com os papéis. De um dia para outro já não valem nada. Hoje um escorregão e caímos de bunda na classe baixa. Foi difícil subir, não dá pra bobear. E não se pode dizer que em cima o trabalho seja duro. Tem mais a ver com intuição. O trabalho pesado foi outro, aos oito anos, carregando galões de água com o tio num negócio próprio. Até hoje para matar a sede só toma cerveja ou refrigerante.
Viviam numa montanha russa. De repente o velho se dava bem, pena que não durava. Pulava de casa em casa, de negócio em negócio, então foi preso; acharam que fosse contra o regime. Meses depois voltou para a família sem muita explicação. Deu para beber, desistiu de dar duro. A irmã passou a sustentar a casa, e ele, aos nove anos, ajudava a entregar os produtos da Avon. Moravam em Jundiaí.
Um dia o tio anunciou, não punha mais uma gota de álcool na goela. Nem bombom com licor. Virou detetive particular na agência de um amigo em Santos. Mudaram de cidade. Voltaram a ficar bem. Depois montou um escritório próprio em São Paulo e abriu um salão para a irmã.
Esse tempo de milagres acabou. Agora, oportunidade é uma vez na vida. Explica que a maioria do patrimônio está em renda fixa. Tem prazer de me ensinar os meandros da coisa. NTNB 2019, 2024, 2032. Não sei se chegaremos lá, mas ele se aflige imaginando se os juros renderão o bastante para um dia nos aposentarmos. Enquanto estamos vivos é preciso tentar juntar muito dinheiro, ele diz. Traçou um roteiro para investirmos em tesouro direto, empréstimo de dinheiro para o governo federal. Basta abrir uma conta bancária e depois uma conta em uma corretora de valores. Há uma infinidade delas. Uma de nome simpático chama-se “Rico”. Pode não ser das melhores, mas pelo menos nunca deu problema. Dá para fazer praticamente tudo pela internet e depois mandar uma cópia da documentação pelo correio. Não há escritório físico. Também não é necessário falar com gerente ou operador. Parece bom assim, mas vai de cada um. Títulos pré e pós-fixados. Juros fixos, drible na inflação; se for baixa, a margem de ganho está garantida. Pós-fixados acompanham a inflação. Costumam dar mais dinheiro: IPCA mais uma taxa fixa de 6 a 7 %. O segredo é respeitar a data de resgate para a alíquota do IR ficar baixa. Existem títulos com vencimentos até 2050. Esses nos dão medo, pelos títulos e pela vida. Há também corretoras com nomes divertidos: Rockefeller, tio Patinhas. (Essas ele diz que eu inventei.)
Em renda variável ele só investe 30% do que tem, para poder dormir à noite. Não fosse a insônia poderia apostar mais e virar tubarão. Na renda variável você investe o dinheiro sem saber se irá recebê-lo de volta. Compra uma fração de uma empresa, vira sócio, recebe os dividendos. O problema é existirem no mercado empresas boas e más. Dentro da Bovespa, hoje, há mais de quinhentas empresas: tem tanto o Itaú, a AMBEV, a VALE, como empresas do Eike Batista. Você entra como sócio(a), a empresa cresce, ganha-se muito, muito mais do que em renda fixa. Na maioria dos casos é assim. Ou com a maioria do dinheiro. Não dá exatamente no mesmo mas deixa pra lá.
Escolhendo mal, ou numa maré de azar, você entra como sócio(a), a empresa pede falência e você perde tudo. E por que tanto sobe e desce na bolsa? Há razões intangíveis, mas podem-se prever algumas: 1) a oferta diária de ações de algumas empresas é gigantesca. Papéis negociados aos milhões. Imagine alguém vendendo rapidamente ações da VALE para honrar um compromisso, certamente esse alguém vai vender alguns centavos abaixo da última oferta para embolsar o dinheiro logo. 2) Outra situação é uma eventual crise no setor. Imagine que a China resolva reduzir a importação de minério de ferro. 3) Há também as situações inusitadas: guerras, catástrofe climática, crise sistêmica, que podem fazer os acionistas fugirem de um minuto para outro, mesmo sabendo que grandes empresas vão se recuperar um dia. Se todos tivessem calma para esperar, possivelmente nada aconteceria. Mas talvez isso não fosse bom pra ninguém.
Bons operadores ganham dinheiro tanto na queda quanto na alta. Para os outros, o pior são os boatos, que têm efeito real, gerando um comportamento coletivo apelidado de efeito manada. Ao contrário dos animais, porém, quase todos se deslocam sem saber o que estão fazendo. O modo racional de se manter no mercado — ele me ensina — é comprar papéis de empresas boas (de várias), segurá-los mesmo quando há derretimento do mercado e saber que as crises são cíclicas. O mercado separa os investidores em tubarões e sardinhas. Os sardinhas compram na alta e vendem na baixa. Os tubarões fazem exatamente o contrário, porque sabem esperar de boca aberta.
Quando as ações sobem ele quer trepar. Eu topo, um pouco sem vontade.
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Fotografia (colorida) de Bia Jardim.