Três contos de Paty Wolff
Paty Wolff (1989, Cacoal – RO) é artista visual, textual e mestre em geografia (UFMT, 2015). Vive e trabalha atualmente em Cuiabá (MT). Pesquisa a decolonização da representação e do olhar sobre corpos pretos em diáspora e povos indígenas brasileiros. Seus trabalhos transitam entre pintura, cerâmica e literatura. Premiada como escritora revelação no Edital Estevão de Mendonça de Literatura Matogrossense 2020, terá seu primeiro livro publicado. Possui contos em antologias nacionais em vias de publicação. Coordena o Centro Cultural Casa da Pretas e integra o Coletivo Literário Maria Taquara – Mulherio das Letras (MT).
***
Cítrica mexerica
Descarregava nossas trouxas do fusca vermelho da tia Fafi. Era pouco o que tínhamos conseguido arrumar às pressas naquela madrugada. O lado esquerdo do rosto de mamãe ainda estava muito inchado e com um grande roxo. O olho, vermelho sangue. Arrastando uma das pernas entrou para dentro apoiada em minha tia.
Em uma janela entreaberta do outro lado da rua, dois olhos me observavam descarregar nossas coisas. Peguei uma trouxa de lençol e aqueles olhos encarei. Voltei para pegar as últimas coisas. Aqueles olhos tinham ganhado um corpo simpático de minha idade e marrom da minha cor. Vestia uma camiseta surrada do Mixto, encostado na porta daquela pequena casa, que quase sumia entre tantas flores e plantas.
Olhos em mim, olhos na mexerica que ele descascava, olhos em mim, olhos na mexerica. Parecia querer fazer graça. Minha boca até sorriu. Mas, lembrei daquela mão grande, áspera, intrusa, segurando minha coxa. Fechei a cara e corri para dentro da casa de iaiá Luzia.
*
Manga verde com sal
De ponta cabeça na namoradeira de junco trançado por minha mãe, o vento esvoaçava meus compridos cachos. Na varanda de chão batido, ventava quente, mas, enfim, era vento. Com os olhos entreabertos vi um coturno super lustrado, duas pernas vestidas em uma calça de camuflagem em tons de verde, se aproximarem de nosso portão. Meus olhos percorreram aquele corpo esguio, de ombros largos, pele preta reluzente que destacava um sorriso branco de canto de boca, olhos preguiçosos cor de paisagem verde em movimento, pareciaaa…. Fubá!
Sentei rapidamente na namoradeira, mamãe dizia, que eu não sabia me comportar de vestido. Aproximando, ele sentou na mureta da varanda. Com os olhos no chão (que pareciam acompanhar um bolo de formigas carregando um defunto besourinho) contou, que estava indo se apresentar na junta militar da capital. Receberia um bom salário, isso ajudaria sua família, (animando) levantou a cabeça e sorriu. Sorriso que não devolvi. Ele estendeu uma das mãos em minha direção, havia uma manga. Corri para dentro de casa. Meu coração acelerou, mas, acho que não foi pela corrida.
Voltei com minha faquinha de estimação sem cabo e uma colher de sal. Cortei um pedaço e ofereci, ele pegou segurando minha gelada mão. Com a careta que ele fez ao mastigar a manga, gargalhei. Mordi meu pedaço no meio do riso, senti a boca travar, meus lábios arderem, senti um arrepio no dente, que desceu até a garganta. Espremi os olhos e abri a boca com a língua para fora. Ele riu. Rimos. Aquele hálito de manga verde com sal, foi o que guardei do último dia em que o vi.
*
Melado com farinha
Nas primeiras horas do dia, o sol de rachar já ardia a terra branca (o brilho ardia minhas pupilas). Sábado ensolarado, um bom dia pra tostar farinha. Tostei rapidinho, queria trocar por melado. Melado com farinha, sobremesa favorita de Lúcio.
Corri com um saquinho de farinha para a casa da doceira da vila. Senti o cheiro do melado de longe. De baixa estatura e corpo franzino encima de um banquinho iaiá Detinha mexia o tacho. O lenço azul favorito na cabeça tentava segurar o suor, que encontrava as rugas de seu rosto como caminho. Com uma das mãos mexia sem parar e com a outra segurava a fina cintura e com cuidado espantava de seu rosto alguma intrometida abelha. Fiquei de longe olhando, morria de medo de inchar meus olhos com alguma picada, pois a noite Lúcio vinha me ver.
Não demorou, iaiá pediu pra eu mexer o melado. Correndo para dentro de sua casa, disse que já voltava. Envergonhei, (engoli o medo) e mexi o tacho. Me deliciei com o vapor adocicado. Meus lábios encostaram nos lábios de Lúcio. Senti sua respiração quente. Corei. Lúcio mordeu meu lábio. Dor aguda. Ficou em brasa. Inchou. Virou um balão de São João. Explodiu! (senti um cheiro de queimado). Abri os olhos e levei a mão na boca. Senti o ferrão no meio do calombo. No tacho o melado encobrido por uma escura fumaça. Refletido na bacia prata ariada de iaiá, vi o enorme beiço.