Quatro crônicas de Herácliton Caleb
Herácliton Caleb é natural de São Paulo e começou a escrever quando se apaixonou pela primeira vez, aos 17 anos; a princípio escrevia poemas pueris de amor – o que o levou ao teatro com a promessa de ser um dramaturgo. No teatro, enveredou pelo caminho da atuação e passou por diversas escolas até se encontrar como escritor. No mundo da literatura se apaixonou pela crônica – o seu maior exercício -, sem deixar de lado seu fascínio pelo conto, poesia e romance.
***
CRISE
Com a crise, Everaldo perdeu o emprego. Para não desapontar a mulher e os filhos, ele ia todos os dias para a porta do trabalho e esperava dar a hora. Um dia um ex-colega o viu.
– Seu Everaldo.
– Matias.
– O que faz aqui, Homem?
– Estava só passando. Como vai a família?
– Ah, está tudo certo. O pessoal anda bem.
– Ah, que bom.
– E contigo?
– Comigo tudo certo.
– Então é isso. Até mais.
Os dois se despedem, mas não saem do lugar.
– Vai ficar por aqui?
– Vou sim, e você?
– Eu também.
– Vai esperar dar a hora?
– Sim.
– Pois é. Eu farei o mesmo.
– Não posso dizer em casa que perdi o emprego. Já temos problemas demais.
– Eu sei como é.
Chega outro funcionário.
– Seu Everaldo, Matias, o que fazem aqui?
– Estamos só matando o tempo – eles dizem em uníssono.
– É, eu também.
TEMPOS MODERNOS
Um carro para em um posto de gasolina.
– Você pode encher o tanque, por favor?
– O senhor quer dizer despejar gotas de combustível em seu automóvel?
– Isso.
(Ao telefone) Lúcia, eu já estou chegando… Estou perto, vai enrolando o pessoal aí que eu chego para a reunião. Aqui no posto…
(Ao frentista) Amigo, qual é o nome desse posto?
– Não é um posto. É uma Gasolineria.
– Como?
– Gasolineria. É um novo conceito de atendimento.
– E qual é nome dessa porra?
– Gotas de ouro, senhor.
– Gosta de ouro?
– Sim. É para frisar que cada mísera gota importa.
– Aposto que você não é mais frentista, certo?
– Não. Sou assessor de abastecimento. Esse é o meu cartão.
– Enzo?
– Isso.
– E essa gasolina é boa, Enzo?
– Sim. 70 por cento de óleo de canola.
– Ok. Pode encher.
– (Ao telefone) Isso, Lúcia… Vai dizendo alguma coisa aí. Improvisa. O quê? O carro? Sim, peguei hoje. Ele é bem macio. Depois te levo para dar uma volta.
– Pronto, senhor!
– Quanto deu?
– 489 reais.
– Porra. Tudo isso?
– O valor excedente é para a preservação das tartarugas.
UM NOVO PROJETO, POR FAVOR!
Fui a um Chaveiro. Minha chave quebrou quando eu tentei abrir a porta com pressa por estar apertado, então subi à rua, virei à direita, andei no sol forte e cheguei ao Tavares Chaveiro. Eu sempre passava na frente e via o senhor com aparência de cansado, solitário, até triste. Hoje lembrei do lugar e entrei. Um lugar apertado entre duas grandes lojas de carro. Um cubículo. Lá o próprio dono me recebeu. Baixo e com cabelos ralos – a antessala da calvície. Não se parecia ao desenho tosco dele mesmo que indicava para todos na rua se tratar de um chaveiro. Estava simpático. Tinha um dente de ouro e não se intimidava em sorrir. Era um lugar perdido no tempo; anacrônico, porém ainda necessário.
“Quero copiar essa chave”, eu disse. “E vai cometer algum crime com ela?”, ele respondeu rindo como se falasse uma piada pela centésima vez crente de sua eficácia. Eu ri. De fato ela funciona. Devolvi uma pergunta: “Muita gente vem aqui com más intenções?”. “Eu não sei, sempre tem uns benditos, mas eu não sei”. “E se soubesse, o que faria?”. Ele pensou por um tempo e mexeu os ombros para frente, entrou e foi copiar a chave. Fiquei analisando o lugar. Muitas chaves penduradas, como se as pessoas se esquecessem como entrar em suas casas. Como se usassem outros modos. Reparei que o lugar era todo arrumado, tudo no lugar, como se ele tivesse lido livros orientais de arrumação. Havia um pequeno jardim de Bonsais no chão e Samambaias na parede.
Quando retornou com a chave me viu olhando as plantinhas e disse: “Bonsai, o nome. Elas não crescem. Ficam assim para sempre”. Eu gostei, quase disse. Fiquei olhando, ao que ele completou: “É o meu novo projeto.”. Consenti com a cabeça. Depois perguntei: Faz tempo que o senhor cuida delas?”. “Desde que minha cachorra morreu, há alguns meses”. “São bonitas”, eu disse de forma indulgente. “Você tem que ver a minha casa. Hoje mesmo minha roseira floresceu. Eu estou animado. Cuido desse jardim há pouco tempo e está bem arrumadinho. Todo dia quando saio daqui eu cuido um pouco dele”. Sorri-lhe um sorriso verdadeiro. “Sabe, filho, foi difícil quando a Francesa morreu. Eu estava bem para baixo, cuidar dela era a minha vida. Mas agora tenho uma nova utilidade. As plantas precisam de mim”. Eu sorri e olhei para a chave para disfarçar. Agradeci. Ele ainda perguntou: “Quer mais alguma coisa?”. Eu disse não, mas queria dizer “Um projeto novo, por favor”.
VOCÊ FOI UM OTÁRIO
Quando, prestes do aniversário de vinte e um anos, eu resolvo mexer nas minhas tralhas, encontro, lá no fundo de uma caixinha, uma cartinha do dia de namorados de 1998. Eu estava na segunda série. Tinha oito anos. Me lembro que no dia 12 de junho, ao voltar do recreio, crianças riram de forma suspeita pra mim. O que eu não sabia era que minha mochila havia sido arrombada por uma meliante mirim com a mais nobre intenção de amor. Eu percebo às risadas, mas ainda não entendo, até que o Filipe, meu amigo do futebol, aponta para minha mochila. Abro rápido e encontro várias cartas coloridas com o meu nome e, como centro das ações, tal qual alguém quando faz aniversário e não sabe o que fazer, faço a primeira coisa que me vem à cabeça. Pego todas as cartas da mochila e jogo no lixo ao som de gritos entusiasmados dos meninos e das meninas.
Depois, eu abaixo a cabeça com vergonha e torço para dar a hora da saída. A professora chega e o Filipe, hoje, blogueiro de fofoca, resolve contar o que acabou de acontecer. A professora diz para não ter vergonha, mas é tão eficaz quanto pedir calma para alguém nervoso. Ela pergunta quem enviou, as crianças se olham, mas ninguém diz. Eu olho para trás e o Filipe continua rindo, no fundo mais atrás, Bruna está com a cabeça baixa chorando. Todos entendem, menos eu. Continuo com a cabeça baixa e saio correndo assim que o sinal bate.
No caminho não quero papo. Quando chego em casa, tiro da mochila meu caderno e descubro uma cartinha solitária, no fundo, colorida e pueril como todas as cartas de amor, ela diz: Apesar de ser muito pequena, eu gosto muito de você. Isso é só para você. E está assinada. Descubro a maior vergonha de uma criança: ouvir a canção “Tá namorando, tá namorando”. Nos outros dias, evito olhar para Bruna. Ela Também está com vergonha. O que torna fácil a convivência. Nos evitamos. Desde então, estamos evitando um ao outro.
Hoje eu recebi uma solicitação de amizade de uma mulher chamada Bruna, lembro vagamente do rosto. Diz que estudou comigo e quer falar algo para mim. Por intuição, eu pego a carta e confiro. O nome bate. É a mesma Bruna. Respondo o recado perguntando o que ela quer dizer. Você foi um otário, ela diz. Eu só queria te dizer isso. É eu fui.