Três poemas de Ayelén Medail
Ayelén Medail – é argentina de Entre Rios, feminista, professora de história e espanhol, tradutora e pesquisadora. Escreve para procrastinar a escrita acadêmica.
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Consultório odontológico
Olhares em diagonal na sala de espera
a fumaça das consciências espessando o ar
erguem-se as espinhas dorsais a cada sirene
que passa uivando na rua principal
Uma entra, mas outra não sai
sai outra, que ninguém viu entrar
os corpos passam pelo umbral do destino
a cada nome chamado: eco oco
a cada nome chamado: soca o peito
engulo a saliva que queima minha garganta
quando dizem meu nome, caminho sem chão
a dança dos materiais cirúrgicos tilintando
irrita meu tímpano que explode enquanto
uma voz suave repete (não faça isso nunca mais)
a cabeça no lugar dos pés na maca horizontal
corre a anestesia pelas veias, deixando rastos
a cada nome chamado: incógnita
a cada nome chamado: ataque moral
a mesma voz (acorda, acorda) no toque leve
é estreito o corredor, o cheiro acre das paredes
afundam o efeito da anestesia que já desiste
meus olhos entre lamacentos e embaçados
detectam uma receita para a hemorragia
fantasma dessa prática tão usual que assusta
Volto a sentir meu corpo, são as gazes
entre as pernas.
*
COLECIONO coisas.
minhas favoritas
são práticas punidas.
coleciono orelhas
de natimortos
para fazer colares.
faço xilofones
dos ossinhos
que nunca foram.
tricoto um
edredom
de cabelos.
tomo o caldo
dos olhos
desses fetos.
que nunca vi
que nunca penteei
que nunca toquei
que nunca chamei
coleciono coisas
minhas favoritas
são lembranças cruéis.
*
TINHA um plano, uma missão.
Fui gerando aos poucos cada parte.
Apenas tinham forma, as tirava fora.
Ia construindo o quebra-cabeças.
O nariz do primeiro: botão de roseira.
Pés e joelhos do segundo: cartões postais.
O par de mãos do terceiro: luvinhas de veludo.
A barriga do quarto: pangeia moderna.
As orelhas do quinto: caracolas oceânicas.
A boca do sexto: papaia madura.
Os braços do sétimo: ramos de cipreste.
Não tinha olhos, não queria que se enxergasse.
Mais de setecentos dias, uma missão,
um treino uterino intenso em que
ia fazendo meu humano a retalhos.
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(Fotografia: Natália Agra [detalhe])
Amelina chaves
maravilha de pagina. todos nos devemos preocupar com a nossa rica cultura. um abraco a todos5