Três poemas de Hugo Lorenzetti Neto
Hugo Lorenzetti Neto é diplomata e tradutor, e atuou quase toda sua carreira, de 2006 até o momento, na área cultural do Itamaraty. Atualmente lotado no escritório do Ministério em Recife, vem traduzindo a poesia completa de Eunice de Souza e obras de Hervé Guibert e Victor Segalen. Oferece oficinas de escrita e realiza clubes de leitura gratuitos, além de divulgar poesia em seu projeto O Caderno Rosa (@ocadernorosa, no Instagram). Os poemas “postais do cu do mundo” “aurora” e “olinda” são parte de seu livro 24, inédito.
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postais do cu do mundo
ninguém sabe se o rio de minha aldeia é belo
menos ainda se é mais ou menos belo que algum rio na Europa
ninguém nunca mais viu o rio de minha aldeia
ou sabe se ele existiu.
o povo de minha aldeia gosta de Miami e
acha que fonte com passarinho de pedra é rio.
eu achava que Zizi Possi cantava
me faz pequena as Amoreiras
avenida que chegava na casa da vó
era feliz e achava Campinas importante
coitado.
não teve aula de estudos sociais
fizeram a brincadeira do copo
Aurélio queria falar comigo
disse que me amava
os jovens demônios acusam
na amaldiçoada Escola Católica
Pontifícia Apostólica Romana Amém
até as almas penadas sabem que
mulherzinha mulherzinha mulherzinha
só falta uma sainha:
Aurélio foi meu primeiro namorado.
um namorado muito lindo que tive
parecia o Leonilson
achava que rua nenhuma merecia
o nome de Orosimbo Maia então
ele a chamava de Orisbondo Marimbondo.
Boaventura era o primeiro nome da rua da escola:
não se pode dizer que não me tentaram ensinar ironia.
no Largo das Andorinhas
a mulher sem coração
marca o bicentenário
da cidade sem coração
mas andorinhas voam pelo vão.
Rogério era lindo magrelo orelhabanudo
jogava vôlei tinha mãos pianistas e
um gogó de estátua renascentista
na história da arte que inventei
sussurrava barítono leggero vibrava
meu peito e minha virilha
parecia o Leonilson
eu fazia as provas de inglês dele
ele me escolhia primeiro pro time.
meia hora antes do fim do treino
fingia ter uma piscina nos ouvidos
o tampão não adiantou quero sair
pra assistir ao professor tomando banho
lavando os músculos acarpetados
se esfoliando com seus calos de puxar ferro
e em 2018 fazendo análise me dei conta
que ele dedicava a mim seu pau – rosa –
duro.
o primeiro boquete foi ele sem nome
lindo parecia o Leonilson
ele Gretel & eu Hansel pela estrada afora
quem tem medo do lobo mau
a trilha da floresta e o banheiro
casinha de doce arquitetura do cano entupido
da Lagoa do Taquaral
e este dedinho magrinho?
botou a boca
durou uns dois minutos
e ele bebeu tudo
e a próxima história é a da Alice.
meu primeiro beijo foi numa boate
enorme todo o interior paulista e o sul de Minas
Ricardo estudante de engenharia da delicadeza
lindo parecia o Leonilson
não hoje não hoje te deixo em casa
mentira que foi o primeiro
o primeiro foi outro que
não entra na conta porque levou
a um estupro na Rua Barão de Jaguara
acontece.
Aníbal depois do cinema partiu com seus elefantes
para Roma (Indaiatuba em português caipira)
e eu Dido solitária tomei uma pedrada
nas costas
eram os romanos leões famintos
agarrei minhas vestes esvoaçantes
deslizei pelos paralelepípedos da Cidade
e puf! nuvem de brocal entre estrelas de sódio
os invisíveis e os cósmicos vivem para sempre
Cartago em chamas
duas malas uma caixa
e um Cometa para São Paulo.
imagina nascer gay em Campinas que azar menina?
*
aurora
1
a lesma escorre lenta e álgica do dente cravado em minha nuca rastro de taturana consome em brasa o pomo-de-adão inquieto enquanto o grito atrás de grades dedos nodosos –– náusea de melancia –– janelas de linha esgarçada atrás da cortina úmida –– náusea de margarida ––
2
não é permitido morrer antes de tirar o primeiro passaporte.
3
amor isso rugido | sereno quente embalsama minhas nádegas | virilha viscosa úmida | rugido | rugido | rugido | amor-isso fera | janela de linhas afogadas | o sereno pensa a dor | a ferida a dor no ânus | soca | soca | soca | sangue das chagas anestésico | ele vai matar a puta porque a puta gosta a puta quer a puta quer a ferida o sangue e quer a morte –– passaporte para ir a Tóquio Tóquio distante não se chega nunca a Tóquio! ––
4
mas se chega a Tóquio antes que ele me termine.
5
melancias e margaridas virilha embalsamada lesmas nuca omoplatas ombros –– se isso é desejo {é?} [é] e meu passaporte e Tóquio? ––
6
nada. margarida. ferro. amônia. passos. resmungos. silêncio. nada.
7
e a calma do sobrevivente da bomba atômica enquanto flutuam em neve cinza vagalumes sem luz descendo do céu.
8
era o pau cor-de-rosa mais bonito. o céu de Campinas num pôr-do-sol poluído. era de pau-rosa a espada
9
a morte pode ser uma vista para um campo de margaridas na Rua Barão de Jaguara dentro de um hotel feio.
a morte pode ser eternidade lenta contada pela rotação de um ventilador de teto de metal pintado de verde velho e a chuva de esporos que comem o cadáver na cama.
a morte pode ser teto cinza-escapamento {para o alto para o alto contrário ao corpo inerte ausente sobre a cama de margaridas e janelas de linha molhadas de vermelho branco ferro amônia}.
a morte pode ser um pequeno sabonete retangular branco cheiro de azulejo tepidez úmida solvente: um fio vermelho um fio branco que se unem para formar aurora já dentro do ralo.
a morte pode ser a navalha de água sobre feridas quase dentro quase fora e dentro e fora.
a morte pode ser uma cantiga recém nascida metálica e intrusa e acalanto de cavalinhos boizinhos leõezinhos.
a morte pode ser uma pilha de roupas dobradas sobre estofado azul verde gasto furado.
a morte pode ser que dobre tuas roupas.
10
toda melancia é radioativa hoje em dia.
11
sobre o lençol um ideograma vermelho prece de cemitérios cobertos de musgos vagalumes e lanternas de fogo pelas almas indigentes [corpos cobertos de lesmas pintados de sereno fúnebre perfumados de ferro] meu sêmen eu meu puro fogo meu sêmen [hora morta neblina morta da cripta emprestada] –– milady, o Barão espera à porta
12
você gozou você quis amor é isso. vá tirar seu passaporte.
13
não inventaram ainda uma palavra para dizer a um recepcionista de hotel gasto quando se entregam as chaves querendo se entregar o uivo.
14
escuro. padaria de nome orly. dois dias de espera e: passaporte. tempo de passaporte tempo para passaportes. sentado no degrau cabeça junto à folha de metal perfume tritício: esperei por sonhos e aviões.
*
olinda
e uma tromba aponta o céu em desestrela e cá na terra flamingos abanam penas impossíveis e o trote de tambores e
tubas no campo de mãos em que venta a sinfonia do presente e
casas íntimas do cortejo aplaudem e o trote levanta poeira rósea de mijo nuvens de fritura olhares de cervejas quentes e
flutuo em toda minha massa cinquenta metros de ladeira e minhas asas salvam a moça vermelha e
pousamos juntos quando os clarins abrem outro e mais outro e mais outro espelho por onde entram brilhos penas e
dou de beber meu suor ao rapaz barbado da TV meus dois lábios rosas seus dois lábios roxos fibra contra fibra músculo contra músculo e
segue o mandruvá vermelho e branco o coco e o frevo e danço com a perna esquerda dela e aquele outro com a minha direita e
todos acenamos com os braços de uma histórica senhora de boa hora e o coração dobra uma esquina adiante sob chuva de colcheias boas ervas e
corre que hoje canta a Lia e corre que vem o dia cor-de-rosa e
esquina exausta de brocal onde desenho um coração de lantejoulas verdes no moço negro e ele morde minhas plumas rosadas molhadas e
uma fumaça de framboesas oculta a impossível constelação do Elefante.