Três poemas de Jefferson Dias
Jefferson Dias, autor dos livros de poesia Último festim (Multifoco, 2013) e Silenciosa maneira (Medita, 2015, mediante ProAC). Tem poemas, contos, traduções e resenhas publicados em periódicos e portais de literatura, tais como as revistas euOnça (Editora Medita), Opiniães (USP) e a portuguesa Caliban, os blogs Literatura & Fechadura, Germina, Ruído Manifesto, Ponto Virgulina, TriploV e Gazeta de Poesia Inédita. Ademais, trabalha na tradução do poema Briggflatts, de Basil Bunting.
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O AÇOUGUEIRO
Meu cadáver passa
A câmera lenta da decapitação
Minha cabeça passa
É uma bicicleta
Os anjos decifram a metáfora das asas e inventam muitas bicicletas;
Eu morri e os anjos mesmos
São metáforas
Que se acendem nas ruas
Que rescendem a feijão –
Nas ruas do subúrbio
A regularidade é
Comovente.
Nas ruas do subúrbio
Há o cinema agoniante das casas vazias
Com todos os seus fantasmas
E os mendigos resplandecem vazios às portas –
As casas abandonadas do subúrbio
São fortalezas submarinas.
No subúrbio
Enquanto a bicicleta rola como uma cabeça desesperada
É possível ver a mãe que
Entrega a cria ao açougueiro e lhe diz: leve tudo
É possível ver o trabalhador que se autoimola e diz
Com a voz chamuscada ao patrão:
O meu sangue não vale um centavo
O meu corpo é vaidade de vaidades
Leve tudo e me proteja –
Qual não será
A culpa
Deste pobre
Que não registrará
Sua entrada no local
De trabalho amanhã?
A normalidade no subúrbio enternece:
Os mendigos olham com seus olhos de fogo e espada
O luar é o tubo de escape da metáfora aprimorada –
O luar é o churrasquinho canibal que cheira tão bem!
Estamos salvos. Saberemos da verdade em breve.
Há ali o vizinho negro que entrega à polícia
O outro vizinho negro e diz:
Leve tudo.
Eu morri
Meu cadáver passa
Aos trambolhões
O cavalo atravanca o tráfego
O cocheiro grita: leve tudo
Não há mesmo nada
O cavalo grita: cá estou e me rendo
Cá estou tão vazio quanto este esquife
Minha cabeça rola:
Pode ser a Anunciação de Fra Angelico, metáfora já perfeita.
Vamos todos à fossa – não há cachaça.
*
(Eu sou o deus do medo eu)
Eu sou o deus do medo eu
Danço no meio do século
A morte me saúda os
Leprosos se levantam estarei
Capitulando? Eu sou o coração
De flúor da ralé
Eu almejo
A carne o beijo a lágrima
Não estarei capitulando?
Agora eu me dirijo a você
Ainda o mesmo bufão
O mesmo miserável,
Mas falo com uma boca radiante
E podre e cheia
Faço cinco refeições por dia
E incendeio as vergonhas
Eu
Tenho medo
De virar suco eu
Tenho medo de ser um pai de família assombrado
E de ir ao supermercado eu não sei
Quem me assassinará amanhã
*
O que pensam as putas
O que pensam as putas
Com seus filhinhos
Elas sobem e sobem –
Cadafalso que rebrilha,
A noite cai como hoste sedenta –
O que pensam as putas
Quando desolam a tarde
Com suas mãos de sangue e cocaína
Com seu alfabeto do desterro
Com seus seios tão embotados
Com seu balé precário contra a cal
O que pensam as putas
Na madrugada que anda
Com seus filhinhos tão dentro
E tão iluminados
Pela violência dos dias puros
O que pensam as putas
Tão forçadas
Ao conhecimento mais profundo das esquinas desesperadas
Das mortes que prescindem da palavra
Tão habituadas à mentira grandiosa
Que é a vida –
Revolver que se apaga como o sono,
O dia raia estriado pela fome –
Não há profecias inscritas nos muros
E os homens passam ruidosos e se assombram
Não porque entendam o último estertor da beleza,
Mas porque ignoram
O que pensam as putas.