Três poemas de José Francisco Botelho
José Francisco Botelho nasceu em Bagé, Rio Grande do Sul, em 1980. É escritor, tradutor e crítico. Colaborou com algumas das maiores publicações do Brasil e atualmente escreve sobre cinema para O Estado da Arte / Estadão. Seu livro de estreia, A Árvore que Falava Aramaico (Zouk, 2011) foi finalista do prêmio Açorianos 2012. Suas traduções de poesia medieval e renascentista são objeto de estudo internacional. Recebeu o Jabuti de prata por suas traduções de Contos da Cantuária, de Geoffrey Chaucer, e Romeu e Julieta, de William Shakespeare. Seu segundo livro de contos, Cavalos de Cronos (Zouk, 2018) foi o grande vencedor do Prêmio Açorianos 2019. Seu primeiro livro de poemas, E tu serás um ermo novamente, está no prelo.
Os três poemas abaixo integram o livro inédito E tu serás um ermo novamente.
***
MEMÓRIA DO LÍBANO
(a última canção de Phillipe Abdenur)
Pity the nation divided into fragments,
each fragment deeming itself a nation.
G.K.G
I.
Esse povo desfeito em estilhaços,
cada estilhaço, um solitário povo
– cada mulher, um gênesis,
cada homem, um êxodo,
em cada lar, uma gehenna,
em cada sala, um sol suspenso
para o combate de Josué,
esse combate que não cessa,
essa batalha sob a tarde intransponível
cujo horizonte fulge para sempre,
num sobressalto estático e vermelho
contra o vulto de um rei aberto em cruz
por um desígnio misterioso do Senhor
– sim, esse povo feito de estilhaços,
cada estilhaço, um povo desterrado,
em cada coração tristonho, a Babilônia,
os lábios ressequidos de maná
– o povo em cujo ser verbera ainda
o golpe com que Gilgamesh fendeu
o crânio de Cumbaba, o Pai dos Cedros,
um povo de fragmentos de muralha
dançando sob os cascos de Bucéfalo,
um povo estraçalhado de profetas,
atormentado pelo Paraíso,
um povo de eremitas condenados
a carregar seu claustro pelo mundo
sonhando com a neve da Montanha
que não se liga à Terra pela terra
mas pelo anel das nuvens e miragens
que os pés humanos buscam, mas não cruzam –
desse povo em destroços recolhi meu pó.
Sou estilhaço desses estilhaços,
eu próprio uma nação, um povo só.
II.
Oh Líbano, te desfizeste em átomos
e não verás meu rosto em tuas praias,
não sentirás meus pés em tuas encostas
não pesarás as minhas mãos de asceta,
nas pedras de Baalbek e de Baskinta,
oh Líbano, serás pra mim agora,
e eternamente, o espectro da jornada
de vinte mil antigos peregrinos
nos conveses de anônimos navios
e um retrato de bordas amarelas
de uma casa de pedra nas colinas
e um pilão esculpido em rocha branca
no mármore de um templo de Dioniso
e o gesto hereditário de fitar
o mundo sob a sobrancelha hirsuta
com os olhos de pedra de um ícone feroz
oh Líbano serás o que mandaste
até mim por caminhos de memória e exílio,
serás esses fragmentos, Líbano, e também
o cheiro de minha mãe.
***
ET FORAS PLORAVIT
I.
“Três vezes esta noite negarás
Meu nome”, disse a voz suave e terrível,
E Pedro respondeu: “É impossível.”
(Porém, naquele instante, Caifás,
Hirsuto, à luz da tocha, ergueu a mão.)
Terrível, suave, a Voz tornou: “Amigo,
Antes que o galo cante, isto eu te digo,
Três vezes ao meu nome dirás não.”
Mais tarde, em meio ao horto cor de lua,
Emboscou-os a armada companhia.
Querendo comprovar sua valentia,
Pedro investiu, brandindo a espada nua.
Parece que era bom espadachim,
Pois, dum golpe, uma orelha foi cortada.
Mas a voz o deteve: “Baixa a espada.
Tens muito o que fazer, mas não assim.”
Prosseguiu a coorte em meio às trevas,
Na senda que a Jerusalém descia.
Mas Pedro foi seguindo a companhia,
Guiado pelo claro das lanternas.
O grupo que avançava, e o homem sujo
De sangue e suor, a pé na trilha escura,
Eram parte da noite convoluta
E estranha que cobria meio mundo.
Porém a parte dominava o todo,
Como a pedra num lago arremessada
Que concentra os anéis n’água encrespada,
Ou a brasa central que agita o fogo.
Feito um braseiro obscuro, a noite ardia;
Girava a água do Tempo, obscuramente;
As horas surdas eram sua torrente,
Seu torvelinho, a véspera do Dia.
Mas sobre a inquietude perdurava
Um enorme silêncio, quase inteiro.
Somente no Sinédrio se escutava
Grito e murmúrio. Os servos, no terreiro,
Acenderam um fogo. Estava frio.
Pedro seguira o bando até o portão;
Sentou-se junto ao fogo. E ali, no chão,
Deixou pender o olhar fundo e vazio.
Vagava em desusada distração
Desde que seu rabino fora preso:
Difusa mescla de leveza e peso,
Sombria luz ou clara escuridão.
Na bainha, dormia a espada vã,
E sua mente escapava pelas margens,
Derramando-se além dos arrabaldes,
Às vastidões, à espera da manhã.
Nos ermos, o chacal sentia fome,
E o mocho tinha os olhos muito abertos.
Arquejavam florestas e desertos
Nessa noite em que o mundo estava insone.
E já sentia Pedro não ser Pedro,
Apenas mais um náufrago noturno.
E qual de nós, de espírito soturno,
Já não sentiu ser outro, embora o mesmo?
E assim Pedro fitava as frágeis tramas
De faíscas e sombra, absortamente,
Quando uma serva, ao lado, de repente,
Inclinou-se e o fitou à luz das chamas.
“Eu te conheço. Andavas anteontem
No templo, com aquele galileu”.
Pedro, emerso do sono, estremeceu
E disse: “Eu não conheço aquele homem.”
Do outro lado do fogo, um almocreve
Ouvindo-o, riu e disse: “Companheiro,
Teu sotaque te entrega por inteiro,
Pois todo galileu arrasta o esse.”
Pedro ergueu-se. A fogueira crepitava.
“Não sei do que me fala esse lacaio”.
Dito isso, afastou-se pelo pátio,
Vendo as sombras minguar. E o céu clareava.
Pedro espiou, à porta do salão:
Lá dentro, um vulto, seminu, de costas,
Sob insultos e cuspes, as mãos postas
Em dois grilhões, olhava para o chão.
Alguém esbarra em Pedro, bruscamente,
E o fita bem no rosto. É um dos guardas.
“Eu te conheço. Ergueste a tua espada
No horto, e parecias mais valente.”
“Não era eu”, diz Pedro. “Não sei nada…”
Mas sua voz se corta: um veio claro
Percorre o céu cinzento, e ao longe o claro
Cantar do galo fere a madrugada.
Um galo só, distante talismã
De um arrabalde estranho, estranho e longe,
Cantando o sol antes que o sol desponte:
O invisível senhor da antemanhã.
Acorrentado e nu, Jesus voltou
O rosto para Pedro. E a luz se erguia.
Pedro fugiu, fugiu na aurora fria,
Correu à viela escura e lá chorou.
II.
Qual deles era Pedro? O que cortou
O rosto do inimigo no jardim,
Ou este, que três vezes renegou
O Nome, antes que a noite chegue ao fim?
Mas poderia Pedro ser a Pedra
Onde todos, valentes e covardes,
Em meio à noite grande e às fundas trevas,
Vêm inclinar as maltratadas faces,
Se não houvesse em Pedro esses dois Pedros,
O que enfrentou a multidão armada,
E o que, aos tropeços, foi-se noite adentro
Para chorar sobre a calçada amarga?
Um homem vive a vida sem saber
Quem é, nem mesmo se existiu de fato,
E adentra a Eternidade sem prever
O que vai encontrar do outro lado.
Mas quando nossas roupas são rasgadas,
E nos cospem, nos tiram pelo chão,
Quando temos as costas chicoteadas,
Arrebentando músculo e tendão,
E o mundo inteiro escorre pelo corpo
Transformado em saliva e sangue e suor,
E o que somos é um velho galho torto,
Amarrado num varapau maior,
E a pele ardida se recolhe e se abre,
E a carne surge à brisa da manhã,
Toda palavra é sal, fel e vinagre,
Toda memória é convoluta e vã
– E ao homem resta apenas seu Pecado,
Que é a mesma Virtude à contraluz.
Isto Pedro entendeu, ao ser pregado
De cabeça pra baixo em sua cruz.
*
QUANDO EU MORRER
Os deuses dão a sombra e a luz. A sombra brilha,
E o coração da luz esconde um claro-escuro.
O mal vive no bem. Não há remédio, filha:
Tu chorarás por mim nas noites do futuro.
O que nos cabe aqui é a triste maravilha.
Nada é somente suave, ou acre, ou doce, ou bruto.
Tudo fere, e eu também vou te ferir. Oh, filha,
Tu chorarás por mim nas noites do futuro.
Mas é nossa missão cair nessa armadilha,
E o que passou persiste em seu estado puro.
Não vou morrer quando eu morrer. Pois, minha filha,
Tu chorarás por mim nas noites do futuro.
José Tadeu Gobbi
Grande Chico Botelho, teus textos referenciados saõ um primor. A forma como você explora o tempo e as referências históricas dentro de uma narrativa poética é brilhante. Bravos.