Três poemas de Laura Redfern Navarro
Laura Redfern Navarro (2000) é poeta e jornalista. Toca a plataforma digital @matryoshkabooks, voltada à literatura brasileira contemporânea, realizando também serviços de assessoria de imprensa para escritores. Pesquisa a linguagem enquanto subversão do trauma e do feminino em O martelo, de Adelaide Ivánova. Em 2021, foi aluna do Curso Livre de Preparação de Escritores da Casa das Rosas — o CLIPE-Poesia. Foi contemplada em primeiro lugar no Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo, o ProAC — 2022, na categoria Poesia, com o projeto O Corpo de Laura.
***
CIDADE DOS SONHOS
I
quando há uma porta
à alvura do papel;
é nela que me deito
II
quando o bonde passou aqui o mundo inteiro esfumaçado é que o asfalto parou o campo é seu
[ inteiro ]
III
ainda não
eu abri a minha camisola
mais uma vez
e você
esteve aqui?
IV
o que teria acontecido [ de verdade ] se eu tivesse entrado por aquela porta naquele dia?
pois fui eu que quis
até que observei
um pé fora do olho;
il n’est pas
de orchestra
V
não havia mais nada
quando acordei
era só o papel
em branco
*
S U P E R F Í C I E
o plástico demora
milhares de anos
para se
[d e c o m p o r]
vaga por aí a sacola
feito um balão de ~ ~ v e n t o
com a cara do gasparzinho
meio vivo e meio morto;
– sem carregar ossos pensamento conteúdo –
o saco plástico
assim
tão /vazio/
constrangimento: [não ter peso] nem sonho_
nem linguagem: pergunto-me
como ele se sustentará assim
ao longo
de tanto tanto Tempo
*
UMA MULHER CAMINHA PELO DESERTO
para Zoë Naiman Rozenbaum
no deserto inicia-se uma travessia. a mulher desgrenhada os cabelos ao longo do tempo crescendo selvagens como os de quem há muito tempo já não sabe a [língua]. ela não sabe mesmo. ela sabe ulular, sabe gemer, sabe fazer [sons]. esta mulher caminha pelo deserto.
faz calor. faz muito calor. e a mulher que caminha pelo deserto está nua. não se importa muito se estão vendo a bunda de fora os seios balançando junto com os cabelos e os cabelos da buceta e a buceta dela. a mulher que caminha pelo deserto está há muitos dias caminhando pelo deserto e não tem como saber o motivo. não sei se ela entenderá se eu perguntar. sei que a mulher que caminha pelo deserto está muito próxima de ser poeta. se já não o é. mesmo que ela não saiba escrever. definitivamente a mulher que caminha pelo deserto sabe o [desejo]:
a linguagem do corpo
a mulher que caminha pelo deserto sabe gozar
sabe descontrair cada músculo do corpo quando goza,
e mesmo que a mulher que caminha pelo deserto não saiba falar nenhuma
[língua]
a mulher que caminha pelo deserto sabe algo melhor do que isso:
ela rebola sutilmente os quadris
sem espanto algum, cadenciando
o movimento dos quadris rebolando
é um ritual que é só dela e de mais ninguém
mas expressa alguma coisa
no fim meio travessa
ela olha para o céu
que não alcançou (ainda)
dá uma risadinha
e volta a caminhar pelo deserto_