Três poemas de Lorraine Ramos Assis
Lorraine Ramos Assis, 22 anos, estudante de sociologia, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Fotógrafa, cujos trabalhos podem ser acessados via Instagram (@catarseoculares). Escreve para tirar uma sociedade da inevitável zona de conforto.
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Do êxodo rural até a extensão de seu condomínio em sua preferida avenida, consigo sentir a plenitude de sua síntese, a qual todos pagam por seus erros tão drásticos quanto o impacto de seus membros torturados por horas naqueles quartos mal iluminados do declínio do capitalismo financeiro.
O repúdio
A covardia
A decadência
São seus princípios a serem seguidos desde aquele hipotético dia.
Dia. Tarde. Noite. Madrugada.
Não temos conhecimento
Temos os frutos desprovidos da ética, da coletividade do pensamento, a filosofia antiga que tanto gostava de disseminar em seus escritos.
Que você tanto renegou em seu leito moribundo
É isso, José
Foram-se os tempos que tanto vociferava em seus papéis beges e brancos.
Do subterfúgio com o teor do álcool (mais precisamente de 5 por cento) que o preenchia nas madrugadas de violento combate interno e externo aos demais em seu redor.
Para onde você caminha, José, se não para o sepulcro que o tanto esperava, pois você o cavava em seu quarto, com seus livros teóricos, que, inclusive, já foram deixados de lado em sua ideologia.
A miséria de seu ser social lhe confinou nas cinzas de seu corpo adoecido, sendo jogados nos verdes que tanto olhava em sua varanda.
Chega, José.
Acabou o subterfúgio.
Você falhou.
Mas ainda o paradoxo vaga em mim.
E a nostalgia daqueles dias me confortam de alguma forma, me atormentam em meus piores pesadelos.
Agora resta-me seu discípulo em minha mente.
Talvez eu sinta o afeto por ele em decorrência de alguma comodidade interna que eu preservo (ainda).
Dou fim a indagações, reflexões, momentos de revolta e saudades.
Para me conter com o que restou
Como também para nunca me conter
*
‘’ Uma cabeça opera por mil, independentemente de seus distúrbios de identidade ‘’
Dorso moribundo
Afago inconstante (não me afague, me afague, mas seja de meu modo)
Estilhaços dispostos nas tábuas de madeira
O afago não comove-me, como a nenhum outro ente posto nesse recinto
(Dor, dor; lamentação importuna)
(Seja mais sagaz)
Jovialidade ininterrupta
Maturação inquisitória
(Nenhuma rede de sustentação)
Corrosivo, napalm, molotov, Dadao
Instrumentalização do impacto reativo
Identidade fixa e dialética
Porém solúvel até sua total nulidade
(Extremo negativo e positivo)
(Quantitativo e qualitativo)
Sangue goteja na tábua de Mogno
Adaga, rifle, Kalashinokov, enxada
O ardor nostálgico dos campos produtivos impera na mente
O arrozal sangra, sangra, sangra!
(O afago não existe mais)
Posses indevidas
Possessividade interpessoais
Posse
Posse
(Poço sem fundo; apenas o decair)
Deteriorante nas relações
Deteriorante na produtividade
Deteriorante através da hierarquização
(Mazelas insustentáveis)
(Adoeço, adoeço)
Vicissitudes incessantes
(Constantes, inconstantes)
Cassação da identidade
Cassação do coletivo
Pauperização secular
Desigualdade ao redor
(O que eu sou: o que eu sou)
(Diga-me, DIGA-ME)
Eu não tenho nome
Eu não tenho feição (apenas cubro, acoberto)
Eu não tenho origem
Eu não tenho pai, eu não tenho mãe
Eu não conheço ninguém
(NÃO QUESTIONE, NÃO QUESTIONE)
(Ensurdecedor)
(Grito ensurdecedor)
E suspendo
E cesso
E julgo-me morta.
‘’ A pensar por mil cabeças, a morte equivale a mil pessoas’’
‘’ Mil cabeças, mas sem identidade’’
‘’ Você nunca foi consistente, mesmo, certo:’’
A operar por mil cabeças, independentemente de distúrbios de identidade.
*
Não tenho mais aquele fogo, sensação de êxtase ou arrepios que me entrelaçavam nos períodos do dia, como há dois anos.
Aquele estilhaço que se originara de impactos ininterruptos para acobertar um espaço acabado parece não ter mais pés para fisgá-los, pois todos pés já sangram em seus devidos leitos.
As enfermeiras são mudas.
Portadoras de glaucoma.
Adoecidas.
Incapazes de ajudar qualquer ente que ousar pronunciar-se.
E o reduzido ambiente transforma-se nas paredes enternecendo-se, derretendo-se aos poucos, mediado pela queda gradativa da lucidez.
Sim, quem sabe a correspondência que situa-se a meu lado neste momento – uma miserável missiva que atordoa-me- fale-me a verdade amargada que tanto neguei, como também deixa-me ainda a continuar imersa nesses recintos.
Eu deveria tê-la lido mais, ou quem sabe deveria não ter-me permitido ficar atenta nela.
Ou quem sabe…
Ou quem sabe…
Ou quem sabe…
Inúmeras indagações que faço, mas que bem lembrado seja meu médico e suas últimas palavras a mim:
‘’ Não pense tanto no – e se -, ou então irá permanecer neste mesmo leito que tanto se debate’’
E cá estou, e cá permaneço
Contudo, agora, permaneço com as memórias não mais ofuscadas dos homens que me visitavam, como também do cheiro de suas vestes em minha face.
Consigo, finalmente, esvair-me dessa materialidade com meus trabalhos concretizados.
Que eu seja enterrada na montanha sem mais precisar me ater às preocupações diárias.