Três poemas de Marcos Siscar
Marcos Siscar é poeta, tradutor e professor da Universidade Estadual de Campinas. Publicou os livros Metade da Arte (2003), O Roubo do Silêncio (2006), Interior via Satélite (2010), Manual de flutuação para amadores (2015) e Isto não é um documentário (2019), entre outros. É também autor de ensaios sobre poesia brasileira e francesa.
Os três poemas abaixo são inéditos.
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Infinito de bolso
diante de mim documentos soltos
em forma de redemoinho não caem
nunca apenas giram simulando voo
feito um blefe contra a gravidade
um protótipo de galáxia um infinito
de bolso em contínuo movimento
seu vórtice cospe antigos boletos
palavras de afeto cartas de protesto
certidões de nascimento e óbito
notícias de longe pulsões de todo tipo
fatos sem contexto flutuam antes
de caírem e cobrem-se de poeira
e mormaço enquanto giram recolho
algumas relíquias e monto roteiros
faço colagens sem modelo
coloco um carrapicho em órbita
o afogado em casa e atrás da porta
o susto de um rosto sem história
*
Penetrável IV – Versão turística
O poema simula o trajeto de entrada. Por exemplo uma escada que desce, ou que sobe. Ou ambas. Pode ser escrito em segunda pessoa, desça por aqui, me siga, cuidado com essa falha no degrau, atenção ao desnível, à geometria irregular, olhe para a lâmpada, ela nos serve de guia. Até aqui nos víamos, agora subi um pouco à frente, continuo falando com você, comento algo sobre a umidade, o mofo das paredes de pedra. Lembro que conhecemos essas escadas. O inverno deixava as mãos geladas, o odor entrava pelas narinas, a história pesava em cada viga. Comíamos bolinho de chuva e bebíamos o café. Silêncio. Olhem a pequena janela que dá para o pomar. Lá fora o mundo é outro, a escada é a mesma. Esses óculos caídos no chão, alguém o perdeu. São de criança? Crianças passaram correndo e fazendo barulho. Acabo de virar à direita antes da sala da biblioteca, que não visitaremos. A luz da lâmpada vai ficando distante. Ouvimos apenas a respiração uns dos outros. Repare que a luz se apagou.
*
Proximidade
por mais que esteja ao lado
não está aqui
jamais nos deu o consolo
de sua escuta
muito chamamos mas não há
desejo que lhe baste
nada mais em torno a não ser
o eco de sua palavra
proximidade quem poderia
dizer seu nome?
quem entre mortos ousaria
medir seu tempo?
só a brecha de um poema
ainda pulsa
constanca
Que lindeza!