Três poemas de Rique Ferrári
Rique Ferrári é sommelier, professor e colecionador de antiguidades. Escreve poesias desde sempre, mas só agora lançou seu livro Rocket Man (Patuá, 2017), um projeto desenvolvido em viagens pela América do Sul, e todo ilustrado por grandes tatuadores brasileiros.
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geração
minha barriga é sincera, juro (alguma não é?)
alimento-me, contudo, de contextos:
aqui, como se dividissem o dia em três crônicas
alegro e nada mais, o pólen dos chãos, o pólen das janelas, o pólen que desce líquido das nuvens; tudo misturado ao bouquet exato pelas ruas nos almoços domingueiros
quando o perfume de carne veloz enfeita a seda simples da pele
pelas portas da pâtisserie o frio desesperado do ciclone chegou
a fazer guardanapos dançarem taekwondo
esbofetando o raquítico biscoito – no entanto –
é necessário entender por que faz calor ainda assim:
talvez pelos fantasmas criados com muito açúcar, relembrando a mágica de Cosme e Damião. sinto, ouço as boas-vindas tatuadas nas vozes quentes advindas dos quintais
talvez porque nosso sexo dorme, e de alguma forma hiperconectada isso aquece o corpo
aliás, não se transa em lugares assim, sacros, sentimentalistas
seja porque percebemos que até as cadeiras são andróginas
ou pelo toque quase vegano dos demais seres humanos
a espremer a alma dos limões para azedar as cascas das carnes
ou calor porque, enfim, na capital mundial do cedro
todos parecem nossos avós, meus, seus, de nossos vizinhos
os cachorros parecem os avós de nossos cachorros
os postes, dos jovens postes brasileiros
e isso, poxa, aquece até os dedinhos da alma
quando criança, lhe disseram que seus avós partiram?
vieram para Montevidéu
apesar da polícia federal negar, garanto-lhe em absoluto juramento.
*
transmutação (+ humano)
somos negros
horizontais na grande redoma do pitoresco diário
e é bonito quando as lâmpadas adoecidas de verão desiludem-se
em sintonia conosco: sim, é quente, estamos vagarosos, fechados como túmulo
onde cochilam nossas pequeninas células exaustas
enquanto no Nevada bolsos postiços engolem bananas de ouro
sabemos pelas cotovias viajantes; vai começar o espetáculo!
como num arroto levantamos dispensando sapatos
um restinho de musselina nos cobre, amém
e nosso ninho de lábios abre lentamente para balbuciar o dia
oi, dia!
aos poucos, um rubor reportado do leste
traz o tempo primaveril dos nossos deuses
os quais criamos desde pequeninos
raios!
ondula o céu lavrado por um estivador cadente
e como ficam distantes os dias do ano passado enquanto observamos
os ballets das cotovias em partida
somos vermelhos
somos laranja
e então somos amarelos
a lagoa e o mar dão-se as mãos ao chegar o astro-rei
luzes florescem junto ao estrume das nossas ânsias transpassadas.
*
o mendigo das coisas
o corpo todo desdentado
algo como apenas 2 megabytes de força, fazendo reforma na comida
retirando casca de pão, devorando o miolo em ágeis mergulhos de boca
observando a tonalidade disforme das migalhas
as migalhas reunidas como a alcateia da fome
a fome que atravessa as sombras
a fome que ora abre a boca, em outras 23 horas, cala
boca de gancho, tentando pescar
um trapo ao léu, rua divã
bem-vindo ao dia mundial das portas fechadas, cadeadas, chaves atropeladas, incendiadas, jogadas do morro, o todo cerrado
apenas aquele calorzinho de loucura adentrando as duas pequenas frestas da narina
esquentou a garganta para gritar, ainda assim, a bruma dissipou
e as palavras borboletearam:
a l
g u ém tm un trok din?
o panfleto-cobertor diz: delta soluções
no seu corpo, salada style –
tipo fraque, barrete, turbante, camisa do superman, nenhum diagnóstico de estilo
na sua alma –
gatófilos correndo atrás de ratos, legionários de centúrias massageando pés, clarins e sinetes rachados; ou o espancamento dos cílios de Madalena
na sua pré-história –
a logística errada dos flamingos que pousaram na África e não a seus pés
pois no seu tronco, duas feridas
uma delas chamada pelo nome: Lurdes, ele diz
reforma pronta: a casca do pão virou túnel
o miolo, casa.