Três poemas de Tiago Alves Costa
Tiago Alves Costa é poeta e ensaista. Autor dos livros W.c constrangido (2012) e Mecanismo de Emergência (2016). Em 2018, a sua obra aparece antologizada na Antologia de Poesia Iberoamericana Actual. O seu relato breve “A Porta do Reconhecimento” foi premiada na 27ª edição do “Premio de Narracións Breves – Manuel Murguia”. Colaborador da prestigiada revista de tradução “Asympote”, com sede em Londres. Actualmente, é editor e co-director da revista de Artes e Letras Palavra Comum. Coordena as relações culturais com a Galiza, no Festival Raias Poéticas (Afluentes Ibero-Afro-Americanos de Arte e Pensamento. Em 2017, torna-se no primeiro português a ser membro da Associação de Escritoras e Escritores em Língua Galega (AELG). É licenciado em Publicidade com uma pós-graduação em Criatividade e Inovação pela Tompkins Cortland Community College (E.U.A). Vive e trabalha na cidade da Corunha desde 2009.
***
OS AMERICANOS!
Fui empregado numa pequena empresa de Mapas,
viajante-parado sem experiência alguma em mundos [
com a nobre missão de ir ali dar uma voltinha
e regressar depois ao meu coração derrotado
que sempre desejou ser superior autoritário manso
sem medo de ficar de repente dependente sem chão nem trabalho?
E armar-se finalmente com uma mulher-pai de loucura sem corpo,
mais vinte cinco dias de um subsídio que alimentaria os vizinhos do 3º direito
a bobine de um elevador que jamais iria além do segundo andar [o céu!
Mas o responsável chamou-me o dia:
o senhor não se disfarce daquilo que poderia ter sido
não se acuse duma frágil estrutura óssea que o sistema nervoso oculta
seja um amante de mapas e odeie os territórios configurados de tédio
as pessoas querem tapar os ouvidos ao roer subterrâneo do real…
não! essa chama da humanidade não é para si… coitadinha a humanidade
o senhor deve eliminar a distância de tudo ser longe demais mais e nada mais!
e facilitar assim a aceleração do mundo
o senhor…
E eu de repente fiquei a olhar um possível senhor-menino que podia haver em mim
fiquei a olhar os meus quartos de pé na lonjura espacial e as dimensões dos Mapas [tão pequeninos
De repente um senhor-menino sem experiência em mapas feixe de nervos a vibrar
adulto sensato a quem de pernas pediram muito e que a cabeça… desmedida corrompida?
Eu, suspeito de ter um dia aquém dos cinco dias do calendário
suspeito de dormir sempre para o mesmo lado
suspeito de amar um sem-abrigo
de albergar um perfil falso?
Eu, com todas as profissões que um dia imaginei ser
um saltador em altura na vertigem um canibal sem fome uma pletórica fada!
sonhando amar em ares virgens
mortal pára-quedista sem infância nem dinheiro
em possuir corpos nas estações
do tempo calmo!
1000 MAPAS PARA FAZER PERDER?
E a olhar o mundo e a imaginar as entradas das cidades subterrâneas antiquíssimas futuristas
a desenhar cálculos exaustivos de possíveis fugas onde me pudesse despedir da família
como se sempre os tivesse amado [com medo
eu com um futuro em Mapas assegurado
mapa fiel e concreto da minha ânsia
longa sucessão de vidas imaginas
ai meu inocente curriculum!
Questionei o responsável:
meu senhor, neste preciso momento meio mundo tem emprego
outro meio mundo busca um meio para não chegar tarde ao trabalho que ama [detesta
enquanto isso eu fui ali e já vim sem que o mundo me visse
e arranjei finalmente uma pessoa entre muitas pessoas
que andavam ontem no meio duma multidão há procura não se sabe bem o quê
NÃO SE SABE BEM O QUÊ é um objecto que só alguém
disciplinado na loucura podia ter pensado em perder
e que a minha data de aniversário muito provavelmente desconhecerá.
meu senhor, eu já arranjei uma daquelas pessoas que em mim escasseavam há muito
e que muito provavelmente me irá ser útil nesse exercício
cada vez mais difícil de me esquecer de mim
de não querer um emprego
sabe…
e com aqueles seus hipnotizados olhos
o responsável retorquiu OS AMERICANOS!
E eu fui para casa pensar no meu futuro
nos americanos.
*
UM PARQUE INDUSTRIAL NUM DOMINGO À TARDE
Fosse como eu próprio vou
de frente para esta realidade percebida como imperfeita
vivendo este estado de coisíssima nenhuma de isto ainda poder ser
como se fosse, na verdade… um parque industrial num domingo à tarde
com as máquinas paradas, os armazéns fechados
os computadores obedientes
os lugares reservados! e ninguém para estacionar
ninguém para ser amado contratado subjugado
[que solidão de pasmo
Fosse como eu próprio vou
imaginando os diretores de lânguidos corações mansos como totalitários
chefes de secção com o banho tomado e como se nota
os comerciais hirsutos especulando nesse sono
que não vende não vence não come?
Parada a empresa de logística
a empresa de comunicação em mute À tout le monde não insistam por favor!
a empresa de recursos humanos sem fortuna química pessoal
os transportistas conspirando estradas sem noite
os especialistas de máquina treinando teimando traindo!
e os vigilantes hastes invisíveis da ânsia coitados
sonhando trepar na carreira de todos os crimes
de operadores a contadores a sentados
de contabilistas a secretários a émulos
do despedimento sem corpo calmo!
Ah, e a pausa para o almoço… tão silenciosa a fome
melancólica paisagem de uma só fotografia
e a puta famosa tão mãe
[que solidão de pasmo
Mas se eu fosse e não pensasse
se eu por acaso fosse bicho ao sol
em cada pranto a sonhar com um poema a sério
se por caso não pensasse aqui todos os dias
como um empregado-escravo-das-horas
avisando a mulher da limpeza “vão corações para sempre, minha senhora”
como se fossemos os únicos vivos dentro desta morte
que ignora as faces dos homens-salmos que já deviam
ter ido para a noite há muito
[que solidão de pasmo
Ah, se eu por acaso fosse e não passasse este poema a limpo
e voltasse para a floresta humana de todos os princípios,
onde o mundo sim é algo digno de ser escrito e inscrito nesta erosão física de todas as rotinas
neste ritmo ansioso do cansaço em cansaço de abraço em abraço
imaginando uma fórmula para aumentar a possibilidade de isto ainda ser
essa coisa que os creditados nos registos do património
avaliam para a causa humanista de todas as causas improváveis
para as quantidades de gente com gente dentro
ah, os horrores económicos
progresso colossal de modernas selvajarias
homem, arranje mas é um trabalho!
Se eu por acaso fosse e não pensasse
mas não, vou como sou
um parque industrial num domingo à tarde
[que solidão de pasmo
*
PALAVRA-POETA-DISTÚRBIO
O poeta avisou:
Antes de me conhecerem, devem primeiro conhecer as minhas palavras.
Então as palavras entraram na sala e o poeta ficou do lado de fora à espera.
No seu interior as palavras começaram a desconstruir o que havia à sua volta.
Aos saltos, sobre as mesas, gritando, despindo-se com esgares de loucura
executando jogos do empurra com os presentes.
Tiveram de chamar dois críticos especializados na área
que não conseguiram entender as palavras, nem debelar o problema?
Chamaram então a polícia.
Algemadas as palavras saíram da sala sobre o olhar cúmplice do poeta
que ali estava sentado na sua melancólica calma, proferindo:
se ainda desejarem, posso agora falar um pouquinho de mim