Três poemas de Tuca Silveira
Tuca Silveira é poeta e compositor carioca. Apaixonado pelos modernistas e por Machado de Assis, tem epifanias poéticas intermitentes – o que nem sempre serve para alguma coisa –, diálogos entusiasmados com sua cachorrinha e alguns poemas publicados. Vive entocado como engenheiro nas horas vagas.
***
À Lorca
Perdi-me muitas vezes pelo horizonte,
com o peito cravejado por espinhos,
símbolos de amores mergulhados em agonias.
Muitas vezes perdi-me pelo horizonte,
como me perco no coração de algumas meninas.
Não há noite em que eu não sinta o fôlego falho,
as mãos pesadas, prontas para voar pelo papel,
tentando desafogar esse coração,
inutilmente afogado em corações alheios.
Porque existem sempre bêbados estúpidos,
tragando vinho em taças trincadas,
e que, apesar do sangue dos lábios pelo cristal,
vivem a teimosia que dá prazer,
mas que também os machuca.
Como me perco no coração de algumas meninas,
perdi-me muitas vezes pelo horizonte.
Ignorando o sol que se põe, sigo buscando
um facho de luz que me remonte.
*
A regra é o desencontro
I
Mais um desamor é covardia.
Mais uma vez, buscar,
em todas as vísceras,
força para a indiferença
e tentar me convencer
de que perdi os sentimentos.
Mas me pergunto, à queima-roupa,
se serei bem-sucedido em desdenhar
desejos que não cabem mais.
Se conseguirei atingir
jurisprudência longe do toque,
dos braços, mãos, pele e boca
e se desenterrarei da memória
nosso gosto embaralhado,
antes de nos depararmos
com bagagens sisudas do coração.
Busco estatutos que condenem à morte
sentimentos que destrato.
Legislações, juízes, processos e sindicâncias
que sublimem ternura, apego e empatia.
Leis que vejam corpos distanciados
como mera física mecânica
e que reduzam à poeira
o que trovadores e filósofos
inventaram de idolatrar.
Sem sucesso.
Ainda conspiro para termos as graças um do outro
e reinvento nossos corpos sobrepostos,
leves como o pano que abre o ato.
Ainda recalculo rotas que me segredem
a esquina em que me desencontrei de você.
Porque nada disso teria sido escrito,
se não me tivesse descasado dos passos seus.
II
A regra é o desencontro;
o encontro, esse desalinho,
teima em desafiar
a norma do desamor.
O costume é não falar,
não expressar.
É seguir em descompasso,
corpos e mentes sob falha,
sob a tese constante
de que tentar é pior do que se conformar.
Se déssemos tempo para o vinho encorpar,
se sugássemos da confluência todas as gotas,
não haveria tanta batalha,
não haveria tanta diferença,
não haveria tanta colisão.
Mesmo na separação,
seguiríamos menos vacilantes e impenetráveis,
antipáticos a batalhas campais entre dar e receber,
a cobranças – com juros de cheque especial –,
por afeto e empatia.
Deixaríamos o tempo soterrar
os rastros feios do coração
e deixaríamos de nos tatear
com braços frouxos e preguiçosos.
Como nossas dores não saem nos jornais,
supomos sempre que encontros nasçam quadrados,
com beijos moles esvaindo-se pelo vazio da cela.
Os prós somem, os contras aparecem,
a carne emudece e tudo impede.
A valentia e suas energias súbitas
extinguem-se pelo mar dos presídios ilhados.
Por mais que remendemos sonetos,
e por mais que maldigamos injustos desfechos,
o desencontro é sempre a regra
e folheamos, agoniados, por notas de rodapé
que enumerem laudas e laudas de exceções.
*
Não nos leve a mal
Quero dizer que a chama passada
não nos obriga a incendiar o presente.
“Vamos revolver antigos suspiros
que vibravam, excitavam e tremiam a carne.”
– podemos pensar.
Mas não precisamos mais.
Aspirar as cinzas do ardor,
reverenciar a fleuma dos instantes,
o anticlímax das inconsequências
e o apaziguamento da flor da pele.
Isso é caminho para o auge também,
para ele recostar-se
e conservar-se ainda mais inteiro.
Benquerer-se, agora,
pode ser como em uma fortaleza:
sem arruinar-se ou decair-se,
sem desfalecer-se em ânsias
ou entulhar-se de desassossego.
Não nos leve a mal, minha querida.
E não me leve a mal também.
Já nos deleitamos tanto
nas covas de leão um do outro.
Já cruzamos tantos sorrisos
que eram disfarces
e que eram desfaçatez.
Deuses não deram de ombros ao nosso amor
e não são de todo carentes de adulação.
A verdade é que nem sempre
devemos oferendas a eles.
Pois, veja, sangue inocente foi jorrado,
sem nenhuma piedade ou remorso,
porque a humanidade insistiu
em sacrifícios sob altares guarnecidos.
Enquanto isso, todas as divindades entretinham-se
com os programas da TV aberta de domingo
e descarregavam graças gratuitas a nós
sem precisarmos nos descabelar os fios.
Não nos leve a mal, minha querida.
E não me leve a mal também.
Dor e alívio andam juntos.
Parece doloroso repousar a paixão
mas, se paramos de fustigar
o beijo que já se dá maduro,
o suave dessa quietude nascerá
e o ócio da chama
não nos será em nada cruel.
Existe muito amor
com um nada de ciúmes
que é profundo por natureza.
Existe muito amor
com um pouco de languidez
que também é profundo por natureza.
Existe muito amor
que chama nossos corpos
para mergulharmos em mares de inverno
e aprendermos frieza.
E nem por isso
deixam de serem profundos por natureza.
Não nos leve a mal, minha querida.
E não me leve a mal também.
A calmaria não será
aquele último fôlego antes do abismo,
e sim aquele suspiro que se trava delicado
junto ao colo bem-amado.