Três poemas de Vanessa Caspon
Vanessa Caspon é poeta, gorda borderline, educadora e produtora cultural. Produz vídeo-poemas e compõe com prints tirados de redes sociais. Faz parte do Coletivo Balbúrdia e do Grupo de Estudos da Deriva. Nasceu e vive no extremo leste de São Paulo, desde o Natal de 1991. Em 2014, lançou Poética de se afogar em conchas, pela Editora Patuá. Mestre em Estudos Literários pela Unifesp, estuda as poéticas de autoras como Sylvia Plath e Ana Cristina Cesar.
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a primeira vez que se vai num motel se tem
seis meses de namoro
dez de universidade
nenhum carro
um tempo enorme gasto em resultados google
dois pacotes de camisinha
quatro ou mais pés entrando em portas
um ou dois pares de lingerie preta de cintura alta
a cintura deve sempre ser alta pra gente
independe local e corpo que passa pelo nosso
depende apenas a marca
os rasgos na coxa do namoro passado
as marcas na pele das horas de lingerie
as dores na lombar dos anos de cintura alta
depois, os ecos no ouvido:
“vc parece uma obra renascentista, tão bonito teu rosto”
“vc é uma das mulheres daquela tamara de lempicka
o corpo grande forte mas tão delicado teu rosto”
isso que a gente aprende na primeira ida ao motel
uma mulher boa não é uma mulher limpa
uma mulher boa é uma mulher marcada
*
.mulher-de-lata.
como vc chegou aqui? vc acionou
o iwatch da sua sobrecoxa esquerda para contar passos?
nossa vida é uma viagem pelo inverno e pela noite
procuramos nossa passagem
mas onde estão os livros de vidro?
e você conhece a lotação
o sentido do chão que às vezes é protegido pela fita zebrada
o silêncio eterno do espaço infinito entre uma listra e outra
entre o trem e a plataforma
o silêncio eterno desses espaços infinitos te apavora?
seu corpo é menos férreo graças a essa noite de hoje
que vc sabe que será mal dormida?
onde estão os livros de vidro?
[primeira lição: sonho é a ferrugem presa no seu desejo]
mas você vê que havia obstáculos em tudo?
[havia uma coerência entre todo tipo de obstáculo, mantendo um reinado coerente de miséria]
você lembra que ainda tem desejos?
deixa guardado na planilha do seu banco de dados?
e onde estão os livros de vidro?
não questiona uma organização da existência sem questionar
todas as formas de linguagem relativas do teu excel mental
qual o código da tua planilha mental você aciona pra deixar sua cabeça oxidar?
onde estão os livros de vidro? e o terror
todo terror é oleoso
terror combustível da vida noturna
o seu corpo de alumínio sabe que horas volta pra casa?
o seu google home sabe que vc a tem?
e seu iwatch?
há muita gente que não chora nem grita diante da palavra de ordem
e a qualquer momento a vida ordinária pode cobrar seus direitos
[segunda lição: todo documento da cultura é documento da barbárie]
corre do grito do tiro da faca do sufocamento calado na sombra
vc sabe já onde estão os livros de vidro?
seu corpo aluminado sabe que horas volta para casa porque não a tem
[terceira lição: não tememos porque, mesmo que se jogarem nossos corpos num buraco como este, venceremos no arquivo]
diante do concreto, vc ousa subir escadas?
os parafusos e engenhos dentro do seu ventre
minguando qual lua escondida após o eclipse que te fez sangrar
corpo que corre porque não tem asas
onde estão os corpos de vidro?
[quarta lição: usamos dinheiro alheio para contrabandear tempo]
estando tudo ligado, era necessário mudar tudo por uma luta unitária ou nada
é preciso reunir-se com as massas, mas, ao nosso redor, o despertador
e quão acordado vc está?
[quinta lição: as artes futuras serão perturbações de situações, ou nada]
há muita gente que não chora nem grita diante da palavra de ordem
pois a palavra do corpo faz livros óticos
*
.a depilação da mulher de lata.
I.
duas pinças de metal
eis nossas novas extensões dos dedos
esqueça o celular a internet
no teu nem cabe mais tanta self
a nova agora é correr pro lago de metal do banheiro
II.
apanha os dedos e puxa
puxa até o último
fio encapado cravado entre os buracos do teu queixo
III.
me disseram antigamente
antes os pelos nasciam de um tal bulbo
era como se fosse uma parede onde nasciam
IV.
de tanto homem falar
tira o pelo do bulbo mulher
o nosso fio desponta aqui ó
deste poro para este poro
a gente nasce sei lá da onde
V.
disseram que antigamente
antes a gente gritava pra arrancar
arrancar o pelo do bulbo
e os dedos não eram extensões de pinças
se a gente mexe demais a boca ele já cai
olha lá
mas me conta
o que é um poro?