Três poemas de Zainne Lima da Silva
Zainne Lima da Silva é do final de 94, filha de retirantes nordestinos, prosadora, poeta e bonequeira. Autora do livro Pequenas ficções de memória, da Editora Patuá. Possui textos na Antologia Jovem Afro e no Cadernos Negros 41, da Quilombhoje; em Raízes: vinte escritoras negras, da Editora Venas Abiertas; em Coisas que as mulheres escrevem, da Editora Desdêmona; em revistas acadêmicas de Letras, revistas e sites de literatura.
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i_ourives
acordar com uma pedra em cima do coração
escrever sobre a pedra
(limpar a pedra
analisar a pedra
moer a pedra
polir a pedra
entalhar a pedra
adornar a pedra)
ser apenas vitrine para que a pedra brilhe.
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ii_anatômico evolutivo
ver-como
o corpo se comporta quando nu
onde dobra onde alonga onde enrijece
as cores que o pintam os pelos os poros
as ranhuras estrias celulites
os caroços as pintas as cicatrizes
de catapora de vacina até de violência doméstica
onde é úmido onde é seco onde é encharcado
e por que
o sangue a pele a unha o cabelo o cílio a sobrancelha
fungos bactérias inflamações putrefações obturações
sons de espirro tosse riso choro engasgo gozo
contrações expulsivas
corte e costura
ver-como
o corpo se comporta quando nu
ao nascer
ver-como
o corpo se comporta quando nu
ao transar
ver-como
o corpo se comporta quando nu
ao morrer
ver-como
o corpo deixa de se comportar
quando pó
*
iii_memórias do cárcere
amei homens
cujo prazer era gozar o silêncio
principalmente quando deviam explicações
para eles silenciar era uma escolha
um repouso para quem o direito do dizer
esteve sempre e sempre garantido
eu descobri o poder da garganta
para quê calar se estive muda nos corpos
de minhas tetra tatara bisa avó
se estive quieta em Eva e em Maria
se meu único som legítimo fora o gemido
de choro dentro de um navio negreiro
o silêncio para mim é cárcere
não fico quieta não ficarei
gritarei cada vez mais alto em prateleiras públicas
forrando os livros com os meus nervos
de aço sim mas humanizados e raivosos
furiosos desvairados excelentemente polidos
no uso poético de cada palavra minha
se um dia me calar será em fogueira de papéis
censura aniquilação do pensamento da expressão
ainda depois de morta
estarei cá em meus livros a falar
sobre memórias de libertação.