Três poemas do livro “Na Pele” de Luciene Carvalho
Luciene Carvalho é escritora e poeta. Publicou Conta-gotas; Sumo da lascívia; Aquelarre ou o livro de Madalena; Porto; Cururu e Siriri do Rio Abaixo (Instituto Usina); Caderno de caligrafia (Cathedral); Teia (Teia 33); Devaneios poéticos: coletânea (EdUFMT); Insânia (Entrelinhas) e Ladra de flores e Dona (Carlini & Caniato). Estas obras conquistaram prêmios e condecorações. Parte importante do seu trabalho, como declamadora, se faz em shows poéticos em que une figurino, efeitos cênicos e trilhas musicais para oferecer sua poesia viva e colocá-la a serviço da emoção da plateia. Luciene ocupa a cadeira nº 31 da Academia Mato-grossense de Letras.
Os três poemas fazem parte do livro Na Pele (Carlini & Caniato) escrito durante a pandemia do Covid-19. A obra traz as mudanças nos dias de confinamento da autora poetisa, seus fluxos e percursos. O lançamento do livro acontece no dia 26 de dezembro, às 15h, no Especial de Fim de Ano da TV Assembleia (canal aberto 30.1) com poesias performadas pela própria autora e convidados.
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MINHA ÁFRICA
Tem uma África
que é minha.
Eu a carrego
sozinha
na pele em que vou,
na cara estampada.
Eu não digo nada,
mas sei quem eu sou.
Não sei se Guiné
ou se Daomé,
talvez o Sudão.
Vasto continente.
Contudo,
a pele em que vou
não tem remetente
ou
sobrenome antigo.
Veio como artigo,
veio numa nau
como um produto
o antigo ancestral.
Minha África
é o olhar que indaga,
que segue e naufraga
nos mares e sóis…
Dia a dia,
minha África segue atenta
aos predadores
e seus sinais.
Caminha e caminha
essa África que é minha
e de ninguém mais.
15/06/2020 – Outono – Lua Crescente.
HERANÇA DO HAVIDO
De tudo
o pior é o que falseia,
é essa ponte inexistente,
linda e estendida
para que sigamos
todos pela vida.
Quanta cortesia,
quantos salamaleques
pra que finjamos
que preta não é criada
e que matar 10 mil moleques
pretos
não é nada,
é violência urbana…
Mesmo que os 100 moleques
mortos na semana
sejam todos pretos.
Basta!
Ao menos tenhamos coragem
pra reconhecer:
é extermínio,
é genocídio,
é crime de ódio
sistematicamente organizado
pra virar piada,
pra – de tão banalizado –
parecer normal.
Essa conversa
de que todo mundo é igual
é o mais cruel
engodo social.
O mundo é hoje.
O hoje é herança do havido
e é, também, legado
a ser transmitido.
E é de basta
que é feita a minha noite.
Minha consciência fere,
como feriu o açoite.
28/06/2020 – Inverno – Lua Nova.
SORTE
E a minha amiga disse:
“Você tem sorte!
Com essa cor,
nem demonstra
a idade que tem!!!”.
Agradeço.
Afinal, tenho sorte;
por toda parte,
o não estampar a idade
me traz benefícios.
Os melhores ofícios
são reservados pra mim.
Sempre foi assim!
“Não, não,
esta vaga será dela,
pois ela
não terá rugas precoces.”
Ou
“Imagina!
Esta menina
terá a pele mais lisa.
Precisa ser escolhida
para essa promoção…”.
Sei que minha amiga
está lotada
de boa intenção,
todavia ela não sabe nada
do complexo sistema
que coloca cada
vida num lugar:
entre a honestidade aberta
e a condescendência,
não estou certa
sobre qual fere mais
minha existência.
Olho pra amiga
de longa data
que não sabe
o universo
que minha pele delata.
Ela nunca me viu?!!!
Suspiro, certa do incompreensível,
e digo pra amiga:
“Bobagem, é Renew”.
15/06/2020 – Outono – Lua Minguante.