Três textos de Camila Passatuto
Camila Passatuto (1988) nasceu em São Paulo. Autora do livro TW: Para ler com a cabeça entre o poste e a calçada (Editora Penalux, 2017). Finalista do Prêmio Jabuti 2019, na categoria contos, com o livro Nequice: Lapso na Função Supressora (Editora Penalux, 2018).
O primeiro texto é o trecho de abertura do livro Nequice: Lapso na Função Supressora (finalista do Jabuti 2019 na categoria contos), os demais são inéditos.
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Nequice: Lapso na Função Supressora
Cortavam panos, como moças a serrar as juntas de novilhos prestes a cevar toda malta d’uma rubra ilha condenada a perder o nome e o cheiro, por conta da distância entre o real e a loucura.
Olha. Separavam dores como quem debulha trigo, era incrível.
Nunca atinei os ponteiros, essa coisa de meio, começo e fi m. Elas tinham hora para comer, depois colhiam vento e cortavam panos. Eu só observava as panturrilhas douradas e definidas pela luz média dos vitrais amarelados, um prazer adolescente que pudera, em turnos tristes e semtemores, salvar o tédio das bielas minhas.
Carregavam crianças invisíveis em barrigas ocas, coçavam as virilhas para um amor sincero, transavam entremáquinas de costura. Suavam o ódio que tempera o rancor.
Entre um socorro e outro perdão, algumas me ofereciam os seios na esperança de amor. Eram carnes de novilhas em súplicas quentes.
E eu comia.
Sem dó.
E ficava ali, senhora de corpos e almas, avoando pelos corredores úmidos das que me partiam o coração. Alimentava meu vazio com as coxas exaustas por pedais.
Depois. Sem pasto, sem lastro… Eu também cortava panos.
[…]
*
Conto’poema
Fui embora algumas vezes.
Sempre expulsa de cômodos vermelhos, úmidos e sem paciência. Em todas, em todas mesmo, vi bocas assustadas aviltar o modo exagerado com que limo vida e corpo.
Tenho os olhos doentes. Caídos nas mãos de uma santa qualquer, presos na fila do banco a roer as ancas da próxima a ser chamada ao balcão higienizado.
As notícias nunca são boas. E fico só, ao ler e-mails cruentos de remetentes famintos, à espera de um trago de som e cor que um cigarro bobo pode oferecer.
As notícias não são boas, menina. Confirma?
Sumi algumas vezes. Quando todos se foram e, tolhida até os nervos, manejei a poesia pecaminosa que nenhum servo ousou esculpir, sumi entre lembranças infelizes dos que me ansiavam longe.
Fui. Como os tubarões de um sonho infante, como as beiras salientes e intocáveis das secundaristas tímidas, como peleja de mãe em dia de morte.
Ainda prego as mãos em muros com grafites antigos. Toda obscenidade de um país-menino se mostra nos calos rachados de seres perdidos. Ainda rezo às treze almas, menina.
As notícias te esfolaram como jamais consegui, não é mesmo?
Entre cerdos, canto Little Girl Blue.
Estou longe. Tenho a alma doente de eternidades.
Perdoa.
–
Cartões postais
apodrecem
em paredes brancas.
Os inimigos
armados,
meninos fortes
Ornejos compassivos.
–
Estava a faquir
por ti
entende?
Só por ti, mulher.
Protegi teus filhos
da tristeza
tua
Foi afável.
–
Teus olhos
mataram a concórdia
(e minha bastarda existência).
Foi deleitável?
Foda-se
até o fim,
amor.
*
Pedra
Gosta quando derramo meus líquidos sobre a casa. Meu choro, meu catarro, meu sangue ovulado, minha trilha gastrópode, o suor misturado. Sei que um risco de satisfação se acomoda em teu ventre, quando escapo e patavinas me faz dobradiça e possível. Você adora.
Não sei o que deseja ler, talvez nem saiba que ainda escrevo pelos rumos apressados de documentos empilhados na repartição central da existência de um caos imaturo.
Minhas mesmices. Eu estive triste, talvez as notícias em sites vazios, talvez a distância do que é suave, talvez você em outro corpo, talvez eu em outras vulvas. Todo esse estrago, meu pó de giz, sabe?
Ainda observo pessoas. Descobri que discursos maldosos, no fundo, ainda são discursos maldosos. Manipulação e jogos de interesses. Afastei-me dessa gente com gosto de mofo e olhos maldosos. Sem prazer nas vias cifradas e pixotadas vazias. Ainda observo.
Da poética, esse cantochão que permite rematar e custodiar o pouco que somos, nada desfiz. Barracos acumulam cidades. Vi um verso avoar gente e não liguei para o fato. Estou ruim do sentir e do amimar palavras. Da poética. Nada se leva em dias de cavalhadas sobre a barriga. Entende?
Não sei o que deseja ler. E não faço nada além de dedilhar, sem estratégias e amor, essa nutriz espaçada de lógica e estrutura. Perdi metade do mundo que pairava sobre meu lampejo de mulher e não sei compor o que congrega o humano à alma, aos céus, ao lixo da vizinhança morta em dia de glória.
Hoje sou mais pedra que mulher. Talvez um muro e um sol.
Você adora.