Três textos de Priscila Lira
Priscila Lira (Pitinga/AM – 1991) Escritora, artista visual, pesquisadora, cozinheira. Mestre em Estudos Literários (UFPR), tem publicados Manual de Feitiçaria e O Barulho do Mormaço, disponíveis em e-book gratuitamente. Os textos daqui, inéditos, fazem parte do seu próximo livro: Solar.
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Ilustração por Ramon Santos de Castro
Mentira acrílica bordada em tecido verde
É assim, eu arranco muitas folhas e lavanda na rua, flores raramente (elas tem talos resistentes, dá um ruim forçar, mas às vezes eu estou mais endemonhada, digamos. Lavanda é flor?). Uma vez arranquei um ramo de jasmin e tranquei dentro de um porta-vela. Fiquei vendo ele apodrecer numa mistura de espanto, desgosto, remorso e perplexidade. Vez ou outra acho lavandas secas nas bolsas. Num dia piedoso, estico os braços e me contenho. Vai doer. Eu não deveria fazer isso, o que me leva a fazer isso? Supondo, só supondo, ok? Supondo que exista um deus, desses grandões, né. Supondo que exista um deus desses grandões, ele veria uma coisa no mundo e que bonita vou roubar pra mim? Me senti mal, deus mataria por isso? Eu não deveria parar e ficar ali, olhando, esperando morrer? Pegar uma muda, talvez… Bem, supondo que exista um deus grandão ele seria tudo e não teria como roubar de si mesmo (nhe, que vida chata, hein) e ao tirar uma folha não se mata a árvore. Assim cortamos cabelo, unha, pêlos. Então é isso. Só sai de mim o que é meu, bom sair né, economia de espaço, peso, facilita a caminhada, eu não quero ser um deus gigante e pesado e possessivo, com problemas circulatórios. Mas é isso, a folha, o fruto o que a planta me dá? Se eu não tiver criatividade nenhuma, sim, né. Tem a textura da folha se esfregando e esmigalhando na minha mão, o espetáculo da morte do galho e o cheiro de alfazema que me suspende dos transeuntes, o espinho, o veneno, a urtiga… Saí do último assalto com a ética do roubo em mãos. Para aprender a ética do roubo é preciso dar. Ou contra o vírus da vip tome a vacina do sample! Vou fazer xixi no quintal às vezes. Crio mundos impossíveis, penso “olha! Fiz um holograma, pena que ele fede a ódio, não existe bom ar para tanta raiva, o que te darei, céu?”. Preciso aprender a fazer xixi na rua sem molhar os sapatos. Sabe o que o mercado de trabalho quer me roubar? Tudo o que eu tenho pra dar. Mercado: máquina de apodrecer folhas no galho. O mercado só me oferece folhas secas em troca. É relação! Renascer fica osso desse jeito. Por isso também é importante botar pra fora o que temos, jogar no vento, ver se chega em algum lugar algum dia. O risco de se engasgar, segurando coisa de mais e se matar por medo de morrer é grande quando a relação, essa bandida, não acontece. Digamos agora, hipoteticamente, que a planta seja uma deusa. Eu também seria. Que é o mesmo que nada. Mas perto de uma arvorezona toda verde, assim, a gente fica tão pequenininho que até se sente capaz de ser atravessado por todos os raios de vida. Morro, morro e sigo tonta. Eles não vão me desentontar!
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Geografia
Ontem eu tava deitada na cama, olhando e brincando com meus mamilos e lembrei da Ana Cristina. Depois pensei que se um ser muito pequeno subisse pelo meu mamilo, como se ele fosse uma montanha, ele veria uma cena interessante: um tipo de cidade abandonada, fabricada por pilhas de tecidos, formando relevos diversos no solo; prédios de livros, uma embalagem de refrigerante, uns desodorantes, óleo de coco, farinha láctea e um kg de semente de girassol, compondo uma área moderna, cubista, suspensa pela mesa de madeira.
No meio disso, eu, uma montanha no colchão, coberta pela metade com flores em 2D, seguida de um terreno fofinho cor de areia, que abriga duas dunas e um fosso. Entre eles uma figura verde, geométrica, com olhos grandes e circulares.
Se eu me mexesse e ele saísse da fábrica abandonada que emite sons, o serzinho descobriria que, na verdade, a cidade de panos, máquinas, papeis e barulho é a casa de dois gigantes bagunceiros.
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FIGHT
Sempre assim, ela chega e quando vai embora mudou a bagunça da minha mesa, pôs lençol no colchão deixa poças de água invisíveis pela casa e a cabeça de cabeça pra baixo.
Antes nossos olhos 24h por dia
trocam farpas na cozinha como se tivesse mulher demais por metro quadrado naquele cômodo. Antes tua cara danada sorri danada, arranca um pedaço podre de mim e cospe de volta no chão, sorrindo, apontando com o olhar, só pra poder me comer com mais gosto depois e.Eeu entre criança envergonhada e contente comigo
eu
brinquedo novo por ti.
Antes nosso mundo foram prédios ruas dispensas e depois tu viveu minha casa como prédios ruas dispensas e preencheu minha trouxa vazia de lixo e purpurina e euforia e pequenos furtos e água e pegadinhas com o diabo.
E depois tu pisou em cima do meu cão de apartamento. Não, não quis, como antes, transformar em gato de rua. Quis enforcar a coleira? A casa é bagunçada, eu puxo tecidos de montanhas porque aqui meu corpo enfim se despe exausto. Tu trouxe o mundo pra dentro e inundou tudo e onde você estava que não sabe mais onde está
aí me vem com essa de sistemas. Meu amÔ, isso não que eu faço pegadinha com você e grito no teu ouvido distraída AAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHH PAAAARA DE MANDAR EM MIMMMMM!!!!!!!!!~1`1`1`11`1`11`1`1“1“!~!~!!~!~““`
E pronto, esfriou tudo
(aí ela começa a dobrar as roupas com cara de paisagem e pega a camisa dela do maiakóvski – seja realista tchanãnã – e coloca na mochila e aquele casaco vermelho maravilhoso que tinha me emprestado, ai que dor)
não, isso não de confundir e desprezar minhas cicatrizes como se eu fosse mais ferida que bicho. Tu sabe que não. E eu sei que esses anos nos deram mil hematomas,
que somos mortos-vivas cambaleando em escombros
deveria eu-agora morder teus pedaços podres?
Acho que minha técnica é diferente acho que prefiro a auto-indigestão e que tá rolante uma agora
e
além do mais….
esfriou aqui, acho que vou mudar de estação. O tempo, você sabe…
o vento, o rio, essas coisas-vivas.
Senti, com prazer, que tu enfiava a mão em mim
talvez com raiva talvez impaciente talvez desolada talvez fosse eu não, com esse sentimento não se entra em alguém.
Assimmmmmmmmmmmmmmmm
não que não tenha sido bom, hehehehehehehe
maasssssssssssssssssssssssss…………………….
Olhei e tu posava para o retrato como um caçador frente a paisagem.
Corri.
Ai, olha, eu nem sei mais.
Mas que esfriou, esfriou.
Acho que pelo menos isso eu sei.
Afff, que otária.
Enfim,
sei lá,
mas tu com esse olhar de capeta,
eu nunca entendo nada
fico sempre desconfiada,
querendo dar minha alma de graça
pra tu destruir feito patrão.
Não vou não vou.
Que dor.
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(Fotografia [detalhe]: Diego Mazzitelli)