Três trípticos e um trecho de novela de Thiago Mattos
Thiago Mattos nasceu em Petrópolis. Em 2012, publicou Teu pai com uma pistola (Confraria do Vento), livro com o qual participou do Festival de Poesia de Trois-Rivières (Canadá). Em 2014, publicou Casa devastada (Confraria do Vento). Em 2015, traduziu e publicou com Diego Grando a antologia Petite rafale – Nova poesia quebequense (OrganoGrama). Em 2018, publica, em coautoria com Álvaro Faleiros, A retradução de poetas franceses no Brasil: de Lamartine a Prévert (Copetti Editor). Também em 2018, publica a novela Solo: noturno a quatro vozes (Confraria do Vento). Graduou-se em Letras na Universidade Federal Fluminense e pós graduou-se em tradução literária na Universidade de São Paulo, com pesquisa sobre Mon coeur mis à nu, de Charles Baudelaire.
A seleção abaixo foi nomeada pelo autor “Três trípticos e um Solo”.
***
Três autorretratos
É a morte contra as vidraças
Cortejo de esperma e tempo
Ou outro magma
Outra larva
Mais viva
E menos tua
Incêndios das águas
Uma boca se abrindo
Boca dentro de outra boca
— Ou agonia
As multidões do incêndio
Outra calmaria, nunca tua
Alguém chora no meu desvão
É a primeira vez
— Incêndio passa
O que não passa é
corpo queimado
Agora se fecham
as janelas
e o mês de todas
os maios
Um pulmão
cozido a frio,
na abertura
das horas
Os mortos levantam
cedo
O sol não começa o dia
É uma fissão
— De onde o sangue
*
Três dias para chegar a Minas Gerais
Fui ao pé da serra incendiar teus navios. Encontrei cinzas – e uma pedra fria. A umidade das igrejas turísticas, a poeira baça dos tapetes muito usados, o espaço sideral, seu fim, seu começo.
Encontro na imensidão das casas o abandono das voltas para casa.
Vejo na cova rasa das horas aquela veia inflamada, sempre ela, à altura dos olhos, mas talvez seja só cansaço.
Horas passadas em avião: para onde vão?
Um gelo cravado no cérebro, pingando pela coluna. Uma nevasca no sangue, retesando os ombros. Água gelada no peito, batendo contra o coração se tento me mexer.
Foi uma tarde quente que ficou mesmo dentro do corpo, secando como secam pano de chão, toalha de rosto, pele de vaca, carne de gente.
Retorno: os fatos novos em espólio de lembrança nenhuma. As paredes de sal, sob o sol, gotejando contra a luz. Terra vermelha, muito vermelha, de vinho, de sangue, de ninguém. Chamo-me Ninguém, e habito o que nunca habitei: 16º andar, 3 vias expressas, um pedágio urbano que prometeram para o ano que vem, ano em que talvez nem esteja eu vivo.
*
Três vãos de coisa
Porém não era mato
nem olho de coisa morta
Era vermelho sobre vermelho
duas perdas que se tocassem
e a terra a estender nosso não.
Quase tudo é pedra
Quase nada é perda
Dentro do rio corre um rio, rios
Sob o céu cresce um céu, céus
Por fora do corpo, como se crescesse da pele,
vai morrendo um feto,
nosso chão diário.
São olhos e ouvidos e gargantas
que se abrem sob o sol,
dentro da terra, e
um astro adormece.
As mãos sobre o ventre
ou dentro do corpo
acariciando um morto
A língua fora da boca
e também dentro do sol
amargando a vida.
*
Trecho de Solo: noturno a quatro vozes (ed. Confraria do Vento, 2018)
Ele está do lado de fora, de costas para a janela. Começa a mover o tronco, os pés fixos no chão, devagar, bem devagar. O rosto um pouco mais para trás do que o tronco, que vai devagar, bem devagar, se contorcendo. Aqui é que os olhos veem. Veem o que está debaixo da mesa. As bochechas tremem, tudo vibra e racha, os pés tentam se endireitar, o corpo queda para o lado, ainda devagar, bem devagar, e ele quase cai.
Devagar, bem devagar, ela sorrindo, ela gemendo e pedindo nela, ele nela e ela querendo e sorrindo e gemendo e pedindo nela, ele nela.
Estava nua sobre o tapete, debaixo de um João gordo e suado.
Melhores descrições não posso dar: sorrio, sem entender, e fecho os olhos.
José entra na sala.
Reabro os olhos.
É um bicho, um cavalo, pega a faca em cima da mesinha de centro. Maria e João se levantam. Ficam sentados no tapete, os olhos arregalados contra a luz que entra pela porta. Maria sufoca um berro nos braços. José dá meia volta no vão da porta, a faca na mão. Lá fora, o cavalo, sob o poste, olha para a porta aberta. José corre, corre torto, corre como se mancasse, como se não aguentasse, não fosse aguentar, enterra a faca no pescoço do cavalo, que relincha, gane, se debate e treme.
Um sangue vivo, aceso, escorre pelo gramado azulado, mela as folhas da grama, brilha debaixo da aurora, como se escorresse do céu incandescente.
– É sangue! É sangue! – Maria grita e corre. Está nua. Para no vão da porta, de frente para o sol. João está sentado no sofá, vestindo as calças. Aparece por trás dela, vestido, oleoso.
José enterra uma segunda vez a faca na carne crispada.
O cavalo sai, pula, corre; arrebenta, estrebucha e morre.
O cavalo está degolado no meio do gramado. As carnes do pescoço, expostas, brilham sob a luz do dia que amanhece. O sangue, grosso e escuro, ainda pinga. Em volta do cavalo, uma mancha melada. É o sangue que, na aurora, azula e escurece. José está sentado ao lado da poça. Os joelhos levantados, onde apoia o queixo. Olha para depois do longe. As mãos, meladas de vermelho, tremem. Maria está no meio do gramado, nua, pálida, um fiapo branco fincado na grama azul. Soluça, esfrega os braços e chora. Tem no abdome e nas pernas riscos de sangue seco. João surge na porta. Acendeu todas as lâmpadas da casa. Os retângulos amarelos vão morrendo sobre o gramado ensolarando. Colocou música alta. Une bossa nova. Sai da casa, anda de um lado para o outro, olhando para o chão e abanando a cabeça. Carrega numa mão uma taça de vinho, que às vezes ergue à altura dos olhos, contra a luz do sol.