Um autoensaio ficcional de Jacques Fux
Jacques Fux é professor da EMGE/Dom Helder. Doutor e pós-doutor em Literatura Comparada (Unicamp, UFMG e Lille 3), é autor de Literatura e Matemática, vencedor do Prêmio Capes pela melhor tese do Brasil, e finalista do Prêmio APCA; Antiterapias, vencedor do Prêmio São Paulo, Brochadas, Prêmio Nacional Cidade de BH, Meshugá: um romance sobre a loucura, vencedor do Prêmio Manaus; Nobel e Georges Perec: a psicanálise nos jogos e traumas de uma criança de guerra. Foi pesquisador na Universidade de Harvard de 2012 a 2014.
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Nobel: um romance-discurso
Sinopse
Em seu discurso pelo recebimento do Prêmio Nobel de Literatura, o laureado Jacques Fux, ao invés de homenagear e elogiar os escritores que lá estiveram antes dele, resolve polemizar e injuriar. O escritor vasculha os segredos, os mistérios, as brigas, a vaidade e o lado negro dos autores, da premiação, de todo o mundo acadêmico e literário que o cerca. Fux revela de forma ousada e surpreende os mais recônditos atos perpetrados pelo cânone literário. Um insolente e satírico discurso que promete alardear a beleza e a verdadeira infâmia que faz parte da criação e da ficção.
Gênese
O ponto de partida para a escrita do livro nasce com Kafka. Em “Um relatório para uma academia”, o sarcástico e irônico escritor constrói um discurso-relatório da memória traumática do ex-símio, Pedro Vermelho. O macaco, agora acadêmico e hominizado, vai a uma prestigiosa universidade para falar de sua vida pregressa. Relatar seu passado, suas experiências e a metamorfose pela qual passou até adquirir status e a suposta glória de se tornar “humano”. O monstruoso e genial escritor ridiculariza a concepção do homem e todo o mundo “acadêmico” com seus costumes, sua arrogância e superioridade.
Nobel, portanto, é inspirado nesse satírico discurso, e se propõe a achincalhar e criticar a Academia e as instituições:
“Eminentes senhores da Academia”, meus caros, foi usado por Franz Kafka — um dos grandes esquecidos aqui — em seu acalorado discurso de ex-símio. Irônico, sarcástico, renegado, maldito, deicida, Kafka nos brinda com o desnorteio. Com o absurdo das palavras, com a originalidade do simples, com a atemporalidade da barbárie cotidiana. Ele é, foi e será sempre único. Narrador bíblico. Místico. Mítico. Precursor dos escritores que o seguiram, que o perseguiram, e também dos que o antecederam. E ele, senhores, indignem-se ou não, nessa sua célebre conferência, nos chamou de macacos. Ele nos insultou e nos acusou de sermos seres irracionais, ilógicos, perversos. Ele nos imputou a capacidade de brincar com nossas próprias fezes, gentlemen! Que bela infâmia. Mas será que ele teria tido coragem de proferir tal discurso neste auditório? Teria tido colhões simiescos para nos afrontar in loco — nós, nobres e pomposos detentores do saber? Ou será que se refugiou nos braços da ficção? Do absurdo? Do extraordinário? Suspeito de que não teria tido coragem, se agraciado fosse. Porém achei fundamental começar o meu discurso da mesma forma que ele. Entendam como quiserem. (NOBEL, 2018, p.11-12)
O discurso perpetrado pelo ganhador da máxima distinção tece uma rede de conexões intertextuais e canônicas. Autores laureados, suas obras, seus discursos, suas infâmias e segredos são inseridos e subvertidos durante o decorrer do “romance” de forma a criar um certo suspense.
As cartas de Kafka a Felice
Após penetrar nas obras de Kafka e no discurso de Pedro Vermelho, o narrador se aprofunda na figura do criador “Kafka” que se desvela nas cartas trocadas entre ele e a sua ex-noiva Felice. A epistolografia do bichano tcheco é riquíssima: nela se pode encontrar a gênese criativa, humana, vil e animalesca do escritor. O narrador, portanto, compõe um outro texto ficcional, agora usurpando a “vida” e “obra” de seu arquétipo literário.
Eu sempre me espanto com Kafka. A sua capacidade e inspiração para escrever tamanhas obras. Sinto sadismo ao tentar descobrir o que aterrorizava o seu ser e seu espírito. Desvendar seus monstros. Suas ficções curtas — desconcertantes e intensas —, suas ficções longas — inacabadas e perturbadoras — vieram, meu Diabo, de onde? Da vidinha banal como funcionário de uma companhia de seguros, ou dos mais íntimos e secretos tormentos, arroubos e indiscrições? Conjecturo leviandades em busca de perdão. Não me deterei nos livros, nos estudos e nos tratados acadêmicos. Todos já estão enfadados disso. Delicio-me com o vulgar desnudado em sua correspondência. Quero honrar e me confundir com esse homem, com esse “verme mole” que se desvestiu para Felice Bauer, nunca imaginando que suas imprudências pudessem vir à tona. Ou será que ele, senhores, o demoníaco escritor, engendrou até isso? Não sei. Mas não duvido. Kafka, enquanto perscrutava os martírios mirabolantes para seus livros, ficou noivo de Felice por duas vezes, mas nunca se casou. Por anos, iludiu sua Dulcineia. Os amantes viveram um romance apenas epistolar, deixando um legado de textos e poemas para que nós, reles escafandristas literários, pudéssemos criar uma versão usurpada do passado. E da literatura. (…) E que grande ironia, senhores! Felice viveu a mágoa e a fúria da rejeição por quarenta e cinco anos. Durante esse período, a memória de Kafka se tornou venerada, cultuada e glorificada mundo afora. As elucubrações e os mistérios do escritor se transformaram em referências canônicas. E a ardilosa Felice, serenamente, assistiu ao advento dessa lenda. Cinco anos antes de morrer, ela tem sua vingança. O finado escritor-embusteiro pagará. Felice vende todas as cartas que trocaram, e também as cartas que Kafka escreveu para Greta. O mundo conhece a face humana, doente, neurótica, hipocondríaca, ciumenta, perturbada e atormentada do inseto mítico. (NOBEL, 2018, p.12-14)
O romance, então, começa a tomar forma: o discurso se mostra um amálgama entre autor, autoria, obra, invenção, subversão e infâmia. Um passeio pela literatura acompanhado dos anti-heróis e da desconstrução do mito laureado pelo Nobel.
Borges e Foucault
Com o intuito de chocar, mas também de compor um suspense noir, o narrador conta e ludibria os atos infames, as injustiças, as pequenezas e infâmias de todo o meio acadêmico e literário. Uma pessoa infame é um alguém desonrado, vil, baixo, marcado pelo opróbrio, vileza e pela digressão. No caso do Nobel, é o próprio narrador praticando sua infâmia; esse ato público atrelado à opinião e ao julgamento do outro, ou dos outros, no caso os “eminentes membros da Academia Sueca de Letras”. Dessa forma, esse ato-discurso infame tem por objetivo escandalizar, polemizar, degredar. Desestruturar as bases da moral, da conduta, da postura ética corrente de um sociedade e cultura criadora de mitos. O narrador performa um papel subversivo homenageando e degradando o próprio papel do escritor e da literatura. Neste momento, a obra bebe em fontes que trataram a fundo essa questão: História universal da infâmia, de Jorge Luis Borges e “A vida dos homens infames”, de Michel Foucault.
O narrador inicia seu discurso obsceno, indecoroso e auto referencial, já iniciando seu pacto com o leitor:
Eminentes senhores da Academia,
Após anos de escolhas polêmicas, algumas vezes equivocadas e até vergonhosas, finalmente os nobres cavalheiros se redimiram e tomaram uma decisão acertada. Caríssimos, o vosso dever foi cumprido. Parabéns. Eu, sem dúvida alguma, sou merecedor incontestável desta premiação. (…) Acredito que muitos estejam incomodados com o início do meu discurso. Arrogante? Presunçoso? Falsário? Será que os senhores já estarão pensando em uma maneira de retirarem a minha condecoração? Afinal, desde 1901, que os laureados sobem aqui e dissimulam modéstia, surpresa e gratidão diante do Prêmio. Mas, sejamos honestos, não há mais tempo para sofismas: todo escritor é um amálgama de Narciso e Dorian Gray. Todo escritor é pedante, insolente, arrogante, vaidoso. Essa é sua essência. E, mesmo que ela seja velada, não há como escondê-la. Permitam-me, portanto, expor, escancarar e assolar o lado obtuso, clandestino, furtivo e maldito — mas essencial para a criação — da nossa casta de escritores. Se a função da arte é desvelar a alma, as vicissitudes e a experiência humana, eu vos ofereço o seu âmago. Todos, todos que algum dia escreveram um livro sonharam com este instante de glória. Todos — até os que negaram — sentiram que foram reconhecidos e condecorados de forma merecida, ou criminosamente obliterados e perseguidos. Não há dúvida de que qualquer escritor, inclusive os de internet, tem certeza de possuir um dom extraordinário e sagrado.
Reza a tradição honrar e homenagear os que aqui estiveram. Aclamá-los como mestres, ídolos, fontes de inspiração e reverência. Colocá-los num patamar sacralizado e quase inatingível. No Hall da Fama e da Glória. Olímpicos. Mas concedam-me outra digressão. É no desvio, nos atos indecorosos, nos recalques obscenos, sórdidos, sorrateiros que repousa o verdadeiro autor e as suas mais sensíveis e honestas palavras. Em meu discurso, farei questão de enaltecer os atos e os textos infames. Tudo que foi e é clandestino e vergonhoso. A infâmia, amigos, é um efeito com valor de sentido. É uma exaltação. Uma necessidade de dar atenção especial ao que não foi inventariado, mas ao que pode ser inferido, resgatado e recriado nas falhas, nas calúnias, nos esquecimentos. Àquilo que nem a própria ficção alcança. (NOBEL, 2018, p.8-10)
Elias Canetti, Veza Canetti, Iris Murdoch
A trama começa a se desenrolar quando o narrador convoca a memória de Elias Canetti, vencedor do Nobel em 1981. Canetti também se “encantou” com a figura humana e vil de Kafka, e, de uma outra forma, reescreveu a história de Kafka e Felice em seu livro O outro processo. O narrador, no entanto, entrelaça a criação da obra sobre Kafka de Canetti com a própria vida e o ménage do escritor búlgaro. Segundo o narrador, Canetti se apaixona pela humanidade de Kafka, uma vez que o próprio Canetti se reconhece um Kafka, com seus segredos e seus atos infames – no caso a servidão que impôs à sua mulher e grande escritora (embora apagada pela figura do Nobel do marido) Veza Canetti, e à sua amante e recebedora do Booker Prize Iris Murdoch.
Símios membros da Academia,
Deslumbrado por todas essas infames fofocas afetivas, Elias Canetti, laureado em 1981, escreve O outro processo: as cartas de Kafka a Felice. Ele confessa de que forma assimilou essa epistolografia e a transformou em fonte literária para sua criação: “Essas cartas entraram no meu espírito como uma vida genuína, e a esta altura afiguram-se tão enigmáticas e tão familiares como se sempre me tivessem pertencido, desde que comecei a tentar acolher em mim seres humanos, a fim de compreendê-los uma e outra vez.” O apóstata Canetti, então, se torna um amálgama. Um amálgama formado pelo romancista e pela sua transcriação de Kafka, Felice, Greta e outros. (…) O estelionatário Canetti confessou seu prazer ao absorver as cartas do tcheco: “Ocorria que a primeira reação que se experimentava — reação que se devia à reverência por ele e à sua desgraça — fosse de embaraço e pudor. Conheço pessoas cujo constrangimento crescia durante a leitura e que não conseguiam livrar-se da sensação de estarem irrompendo em regiões onde justamente não lhes cabia penetrar. Respeito-as muito por essa sua atitude, porém não faço parte delas. Li aquelas cartas com uma emoção tamanha como havia anos nenhuma obra literária me causara”. (…) Canetti e Murdoch foram expostos. Aplaudo o casal sadomasoquista, ato que nunca consegui realizar, apesar de me encher de desejo. Elias Canetti, Iris Murdoch e Veza Canetti — a esposa oficial do laureado — escreveram sobre esse romance, porém as cenas não foram tão belas, tão trabalhadas e requintadas quanto a cena de Broch e Anna. Iris afirmou que Canetti era: “um artista-manipulador-sádico-mitômano”, “misógino” e um “miserável em busca de poder”. Um amante cruel, perverso, bestial. Um escritor menor. Atônito e ofendido diante de tais declarações, o laureado revidou: “Iris é vulgar, medíocre, irrelevante.” (NOBEL, 2018, p.23-25).
Ménages literários e outras veredas
O discurso-romance continua e novos “personagens” e ménages são apresentados: o laureado Sartre aparece cercado de seus amigos e de suas aventuras sexuais e filosóficas: Simone de Beauvoir, Claude Lanzmann, Évelyne e Deleuze. Évelyne e Deleuze, por sua vez, viveram um romance rápido e acabaram se suicidando em momentos diferentes. Uma nova vereda é aberta: a dos escritores que ganharam o Nobel e se suicidaram como Kawabata e Hemingway. E assim segue o discurso, criando caminhos e conexões diversas e homenageando os atos infames dos “personagens-autores” e da literatura de: Svetlana Alexievich, Imre Kertész, Garcia Márquez, Vargas Llosa, Derek Walcott, Coetzee, Xingjian, Mo Yan, Beckett, Agnon, Bashevis Singer, entre outros.
Nobel é um romance, uma ficção, um discurso e um estudo literário e intertextual. Um híbrido divertido, e que faz pensar e sair da zona de conforto.